Tribunal Constitucional Relatório de Atividades 2021

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 1 RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021

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RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 3 Apublicação do presente relatório temdois objetivos fundamentais: dar cumprimento à obrigação legal de publicar relatórios anuais de atividades e respeitar o compromisso de transparência que é um elemento fundamental do sistema democrático. Neste âmbito, o Tribunal tem procurado dar conta da sua atividade aos cidadãos, para tal utilizando diversos meios, nomeadamente a sua página na internet onde estão acessíveis todas as decisões proferidas. Em 2021, o Tribunal Constitucional proferiu 1717 decisões, das quais 948 acórdãos - o número mais alto dos últimos 25 anos - e 769 decisões sumárias. Neste relatório é selecionada jurisprudência de interesse público. O ano de 2021 foi muito marcado pela pandemia COVID-19, como já havia sido o anterior, com as consequências que todos amargamente conhecemos – os confinamentos, o isolamento do ambiente social e profissional, a atividade à distância. Não obstante o esforço de normalização possível, algumas áreas de atividade do Tribunal ressentiram-se, designadamente as relações internacionais. Acarretando acrescidas exigências em matéria de defesa da saúde pública, a situação pandémica tem operado, em quase todos os países, como fator de limitação, restrição e, mesmo, suspensão de direitos e liberdades fundamentais, com destaque para a liberdade de deslocação. Nos países que admitem instrumentos de acesso direto à jurisdição constitucional para defesa de tais direitos contra leis e contra medidas de natureza administrativa impostas pelos governos, foram-se multiplicando processos relativos à defesa de direitos fundamentais. Não assim entre nós, onde os litígios chegam ao Tribunal Constitucional necessariamente vindos de outros tribunais, por via de recursos de constitucionalidade. Só mais tarde estes recursos começaram a ser decididos, tendo o Tribunal já invalidado diversas normas legais e regulamentares com fundamento na ofensa daqueles direitos. Porque os seres humanos são o mais importante de qualquer organização, entrámos em 2021 chorando a morte inesperada do oficial de justiça Bruno Quinhones, muito apreciado pela nossa comunidade, que nos deixou em finais do ano anterior. Homenageámo-lo solidariamente, apoiando a família enlutada. Mas a vida continua e com ela a esperança de uma vida mais normal, agora que as sombras da pandemia parecem dissolver-se. João Pedro Caupers Presidente do Tribunal Constitucional NOTA PRÉVIA

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 4 NOTA PRÉVIA 1. COMPOSIÇÃO DO TRIBUNAL 2. ATIVIDADE JURISDICIONAL 2.1. Acórdãos e decisões 2021 2.2. Jurisprudência selecionada 2.3. Jurisprudência selecionada por área do Direito 2.4. Acórdãos relativos a declarações de património e rendimentos dos titulares de cargos públicos. 2.5. Eleições para Presidente da República 2.6. Eleições para as Autarquias Locais 3. MINISTÉRIO PÚBLICO 4. ENTIDADE DAS CONTAS E FINANCIAMENTOS POLÍTICOS 5. ENTIDADE PARA A TRANSPARÊNCIA 6. OUTRAS ATIVIDADES 7. RELAÇÕES INTERNACIONAIS 8. RELAÇÕES INSTITUCIONAIS 9. SECRETARIA JUDICIAL E SERVIÇOS DE APOIO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 10. PROJETOS EM CURSO ÍNDICE

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 5 COMPOSIÇÃO DO TRIBUNAL 1.

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 6 COMPOSIÇÃO DO TRIBUNAL O início do ano de 2021 é marcado pela mudança de composição do Tribunal Constitucional, com a eleição do Presidente e do Vice-Presidente e de novos quatro juízes. Na sessão plenária de 9 de fevereiro, na sequência do termo do mandato de Presidente do Juiz Conselheiro Manuel da Costa Andrade, foram eleitos o Presidente João Pedro Caupers, até então Vice-Presidente, e o Vice-Presidente Pedro Machete, a exercer funções no Tribunal desde outubro de 2012. A posse nos novos cargos teve lugar a 12 de fevereiro, na sala de atos públicos do Palácio Ratton. A 15 de fevereiro, o Conselheiro Manuel da Costa Andrade renunciou ao seu mandato, ficando, até outubro, a composição do Tribunal Constitucional reduzida a 12 elementos. A 1 de outubro a Assembleia da República elegeu quatro novos juízes: Afonso Patrão, Professor Auxiliar na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; António José Ramos, Juiz Presidente da Comarca de Leiria; José Eduardo Figueiredo Dias, que cessou o mandato como Presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, e Maria Benedita Urbano, Juíza Conselheira do Supremo Tribunal Administrativo, que, além do Conselheiro Manuel da Costa Andrade, substituíram os Conselheiros Fernando Vaz Ventura, Maria de Fátima Mata-Mouros e Maria José Rangel de Mesquita. Os novos juízes tomaram posse no dia 12 de outubro perante Sua Excelência o Presidente da República, no Palácio de Belém. Organograma

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 7 Composição (da esquerda para a direita): Assunção Raimundo, Gonçalo Almeida Ribeiro, Eduardo Figueiredo Dias, António Ascensão Ramos, Mariana Canotilho, Maria Benedita Urbano, José João Abrantes, Lino Rodrigues Ribeiro. Em baixo: José Teles Pereira, Vice-Presidente Pedro Machete, Presidente João Caupers, Joana Fernandes Costa; Afonso Patrão.

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 8 ATIVIDADE JURISDICIONAL 2.

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 9 ATIVIDADE | DADOS ESTATÍSTICOS FISCALIZAÇÃO PREVENTIVA FISCALIZAÇÃO ABSTRATA SUCESSIVA FISCALIZAÇÃO CONCRETA DA CONSTITUCIONALIDADE (RECURSOS E RECLAMAÇÕES) DECISÕES SUMÁRIAS PARTIDOS POLÍTICOS ELEITORAIS CONTAS E FINANCIAMENTOS DOS PARTIDOS POLÍTICOS E DAS CAMPANHAS ELEITORAIS TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS E ALTOS CARGOS PÚBLICOS 2 11 712 769 31 168 22 2 1717 Em 2021, o Tribunal proferiu 1717 decisões, das quais 948 acórdãos - o número mais alto dos últimos 25 anos - e 769 decisões sumárias. 2.1 ACÓRDÃOS E DECISÕES 2021

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 10 Foramproferidos 948 Acórdãos: 2 acórdãos de fiscalização preventiva; 11 de fiscalização abstrata sucessiva; 712 acórdãos de fiscalização concreta da constitucionalidade (recursos e reclamações) e 769 decisões sumárias; 31 processos relativos a partidos políticos; 168 processos eleitorais; 22 acórdãos de apreciação de contas de partidos políticos e campanhas eleitorais; 2 processos relativos a titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. ACÓRDÃOS ACÓRDÃOS E DECISÕES DO TRIBUNAL ENTRE 2011 E 2021

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 11 2.2 JURISPRUDÊNCIA SELECIONADA Todas as decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional estão disponíveis na sua página. Destacam-se aqui os Acórdãos de maior impacto para a sociedade. Plenário Fiscalização Concreta | Recurso O Tribunal apreciou o recurso do Acórdão n.º 134/2020, que julgou inconstitucional a norma contida no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, que pune “quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição” (Crime de lenocínio). Aquestão da inconstitucionalidade da referida norma penal já havia sido apreciada pelo Tribunal Constitucional, num número particularmente expressivo de arestos, numa linha decisória iniciada com a prolação do Acórdão n.º 144/2004 – posteriormente a este, v., designadamente, os Acórdãos 196/2004, 303/2004, 170/2006, 396/2007, 522/2007, 591/2007, 141/2010, 559/2011, 605/2011, 654/2011, 203/2012, 149/2014, 641/2016, 421/2017, 694/2017, 90/2018, 178/2018, 160/2020 e 589/2020 –, sendo todas essas decisões no sentido da não inconstitucionalidade CRIME DE LENOCÍNIO Acórdão n.º 72/2021 | 27 janeiro 2021

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 12 O recurso, interposto nos termos do artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC, destina-se a superar a apontada divergência. O Tribunal começou por analisar as posições no sentido da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, que assentaram na afirmação da perda de conexão com um bem jurídico suficientemente definido, a partir das alterações introduzidas na norma incriminadora pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro. Ao eliminar-se o elemento típico de exploração de uma situação de abandono ou necessidade, já não estaria em causa a proteção da liberdade sexual e, por outro lado, a dignidade da pessoa humana seria mobilizável em termos vagos, não oferecendo suporte bastante à incriminação.Não se afigurando viável considerar uma interpretação do preceito mais restritiva do que a sua letra consente, restaria apenas, então, a injustificada criminalização da mera atividade de proxenetismo, a tutela por via penal de interesses morais ou de bons costumes, a evitação “do pecado”, que poderia manifestar-se até com sinal contrário ao da liberdade individual das pessoas que a norma visou proteger. Os possíveis comportamentos atentatórios da dignidade humana estariam fora do tipo, sem poderem considerar-se necessária ou mesmo razoavelmente pressupostos na ação expressamente proibida, o que, especialmente estando em causa um comportamento passível de acordo, não consentiria uma construção constitucionalmente conforme de um crime de perigo abstrato, já de si particularmente exigente. Todavia, conforme sublinhou o Tribunal, outras decisões, em expressiva maioria, adotaram uma orientação no sentido da não inconstitucionalidade da norma sub judice; atravessa este entendimento uma ideia – a sua ideia fulcral – de que “[...] a ofensividade que legitima a intervenção penal assenta numa perspetiva fundada de que as situações de prostituição, relativamente às quais existe promoção e aproveitamento económico por terceiros, comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social, interferindo com – colocando emperigo – a autonomia e liberdade do agente que se prostitui”; existe, em tais casos – e corresponde ao entendimento deste Tribunal desde a decisão de 2004 –, uma genérica e preponderante apetência da ação descrita no tipo para o desencadear de eventos ou criar situações cujo desvalor (cuja danosidade), causalmente conexionado, imediata ou mediatamente, com o exercício da prostituição, o legislador quis antagonizar, através do instrumento de atuação do Estado correspondente à perseguição criminal, sendo certo que a opção por essa via ocorre num quadro racionalmente compreensível de valoração das potencialidades desvaliosas da realidade social envolvida (precursora, desencadeada ou propiciada) no conjunto de situações correspondentes ao fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição, por parte de alguém, que não o próprio agente do crime, numquadro de atividade profissional ou de um exercício com intenção lucrativa. Não estando, manifestamente, em causa “[…] saber se a incriminação do lenocínio, nos moldes em que se se encontra prevista, traduz a melhor opção ao nível da política criminal”, importa notar que “[…] o critério da necessidade de tutela penal, enquanto decorrência do princípio da proporcionalidade, na dimensão acolhida no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, foi sempre apreciado pela jurisprudência constitucional proferida sobre a incriminação do lenocínio”, o que não impediu que se concluísse pela “[…] legitimação material da norma incriminadora constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na redação conferida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, à luz do princípio da proporcionalidade”; de onde resulta uma liberdade, com amplitude muito con- “O Tribunal apreciou o recurso do Acórdão n.º 134/2020, que julgou inconstitucional a norma contida no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, que pune “quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição”.”

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 13 siderável, do legislador em punir ou não punir os comportamentos, neste âmbito, com o que nisso vai implicado em termos de não proibição constitucional da solução adotada. Existe uma diferença substancial entre a mera atividade de prostituição (não punida), e a (outra) atividade que a fomenta, favorece ou facilita, deslocando a segunda do campo da mera liberdade individual para uma constelação de relações sociais muito mais complexas, e desligadas das circunstâncias referenciáveis à individualização do ato de prostituição, que é inevitavelmente próxima – demasiado próxima – de movimentos, nacional e internacionalmente organizados; com tal proximidade se gera um risco socialmente inaceitável, que não exorbita o âmbito de proteção da norma, nem dele é sequer periférico, porque se trata de um risco conatural ao proxenetismo, cujo empresário – como o de qualquer outro negócio – tende a organizar-se de modo a potenciar o lucro, objetivo ao qual, mais tarde ou mais cedo, dificilmente escapará o dano (d)a vontade e (d)a liberdade das pessoas que se prostituem; mesmo que a expressão exploração esteja fora do tipo – e, como tal, não seja facto a provar in concreto – o risco da sua materialização é suficientemente forte para conter a norma dentro dos limites da proporcionalidade e, em particular, da necessidade da intervenção penal. É o sentido da linha decisória a este respeito assumida, e diversas vezes reiterada, pelo Tribunal Constitucional desde 2004, num entendimento geral desta questão, que, em oposição ao Acórdão recorrido, o Tribunal concluiu ser de afirmar de novo. “Existe uma diferença substancial entre a mera atividade de prostituição (não punida), e a (outra) atividade que a fomenta, favorece ou facilita, deslocando a segunda do campo da mera liberdade individual para uma constelação de relações sociais muito mais complexas (…).”

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 14 Plenário Fiscalização Preventiva MORTE MEDICAMENTE ASSISTIDA Acórdão n.º 123/2021 | 15 março 2021 O Tribunal Constitucional decidiu o pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade de diversas normas do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República, com destaque para o n.º 1 do artigo 2.º relativo às condições em que a antecipação da morte medicamente assistida não é punível e à alteração do Código Penal daí decorrente, que o Presidente da República lhe submeteu. Nos termos daquele artigo 2.º, n.º 1, que é a norma que consagra a opção do legislador de não punir a antecipação da morte medicamente assistida, quando realizada em determinadas condições, uma pessoa só pode recorrer à antecipação da morte medicamente assistida não punível desde que observe todas e cada uma das condições previstas nesse artigo, entre as quais se destaca a de tal pessoa se encontrar «em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal». O Senhor Presidente da República, a título principal, suscitou duas dúvidas de constitucionalidade apenas quanto aos seguintes aspetos desta última condição: 1.ª - O caráter excessivamente indeterminado do conceito de sofrimento intolerável; 2.ª - O caráter excessivamente indeterminado do conceito de lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico. O Tribunal entendeu, em primeiro lugar, ser indispensável considerar a norma do referido artigo 2.º, n.º 1, como um todo incindível. Em segundo lugar, o Tribunal apreciou, tendo concluído pela negativa a questão de saber se a inviolabilidade da vida humana, consagrada no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, constitui um obstáculo inultrapassável a uma norma, como a do artigo 2.º, n.º 1, aqui em causa, que admite a antecipação da morte medicamente assistida em determinadas condições. A este respeito considerou o Tribunal que o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias. Na verdade, a conceção de pessoa própria de uma sociedade democrática, laica e plural dos pontos de vista ético, moral e filosófico, que é aquela que a Constituição da República Portuguesa acolhe, legitima que a tensão entre o dever de proteção da vida e o respeito da autonomia pessoal em situações-limite de sofrimento possa ser resolvida por via de opções políticolegislativas feitas pelos representantes do povo democraticamente eleitos como a da antecipação da morte medicamente assistida a pedido da própria pessoa. Tal solução impõe a instituição de umsistema legal de proteção que salvaguarde em termos materiais e procedimentais os direitos fundamentais em causa, nomeadamente o direito à vida e a autonomia pessoal de quem pede a antecipação da sua morte e de quem nela colabora. Por isso mesmo, as condições em que, no quadro desse sistema, a antecipação da morte medicamente assistida é admissível têm de ser claras, precisas, antecipáveis e controláveis. Em terceiro lugar, e quanto à primeira dúvida de constitucionalidade referida pelo Senhor Presidente da República no seu pedido de fiscalização preventiva, o Tribunal entendeu que o conceito de sofrimento intolerável, sendo embora indeterminado, é determinável de acordo com as regras próprias da profissão médica, pelo que não pode considerar-se excessivamente indeterminado e, nessa medida, incompatível com qualquer norma constitucional. Em quarto lugar, e no tocante à segunda dúvida de constitucionalidade referida pelo Senhor Presidente da República no seu pedido de fiscalização preventiva, o Tribunal entendeu que o conceito de lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico, pela sua imprecisão, não permite, ainda que considerado o contexto normativo emque se insere, delimitar, como indispensável rigor, as situações da vida em que pode ser aplicado. Por causa dessa insuficiente densidade normativa, que afeta uma das condições previstas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 15 República para aceder à antecipação da morte medicamente assistida não punível, o Tribunal concluiu que a norma constante desse artigo se mostrava desconforme com o princípio da determinabilidade da lei corolário dos princípios do Estado de direito democrático e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP, por referência à inviolabilidade da vida humana, consagrada no artigo 24.º da mesma Lei Fundamental. Nestas condições, o Tribunal pronunciou-se pela inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República e pela inconstitucionalidade consequente das restantes normas incluídas no pedido de fiscalização preventiva. “(…) Por causa dessa insuficiente densidade normativa, que afeta uma das condições previstas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República para aceder à antecipação da morte medicamente assistida não punível, o Tribunal concluiu que a norma constante desse artigo se mostrava desconforme com o princípio da determinabilidade da lei, corolário dos princípios do Estado de direito democrático e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP, por referência à inviolabilidade da vida humana, consagrada no artigo 24.º da mesma Lei Fundamental.”

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 16 1.ª Secção Fiscalização Concreta | Recurso QUARENTENA OBRIGATÓRIA | COVID-19 Acórdão n.º 173/2021 | 24 março 2021 O Tribunal Constitucional, em sessão de julgamento da 1.ª Secção, apreciou um recurso de constitucionalidade que teve por objeto a norma contida no n.º 6 da Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020, de 31 de julho de 2020, emanada do Governo Regional da Região Autónoma dos Açores, que cria um procedimento de validação judicial da quarentena obrigatória ou isolamento profilático decretados pela autoridade regional de saúde relativamente a passageiros que desembarquem nos aeroportos nas ilhas de Santa Maria, São Miguel, Terceira, Pico e Faial, provenientes de aeroportos localizados em zonas consideradas pela Organização Mundial de Saúde como sendo zonas de transmissão comunitária ativa ou comcadeias de transmissão ativas do vírus SARS-CoV-2. O Tribunal começa por referir que a referida norma havia sido apreciada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 687/2020, da 2.ª Secção, no qual se decidiu «julgar inconstitucional, por violação do disposto nas alíneas b) e p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, a norma contida no n.º 6 da Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020, de 31 de julho de 2020, emanada do Governo Regional da Região Autónoma dos Açores, que cria um procedimento de validação judicial da quarentena obrigatória ou isolamento profilático decretados pela autoridade regional de saúde relativamente a passageiros que desembarquem nos aeroportos nas ilhas de Santa Maria, São Miguel, Terceira, Pico e Faial, provenientes de aeroportos localizados em zonas consideradas pela Organização Mundial de Saúde como sendo zonas de transmissão comunitária ativa ou com cadeias de transmissão ativas do vírus SARS-CoV-2». Considerando que mantinha total pertinência a fundamentação expendida no Acórdão n.º 687/2020, o Tribunal limitou-se a proceder à respetiva transposição para o juízo a empreender, o que fez nos termos que seguidamente se expõem. A norma questionada nos presentes autos, ao criar um procedimento de validação judicial de confinamento obrigatório decretado pela autoridade regional de saúde, embora não constitua, em si mesma, uma restrição que afete direitos, liberdades e garantias, isto é, que contenda diretamente com qualquer dos direitos enunciados no Título II da Parte I da Constituição da República Portuguesa, ao estatuir sobre a validação de medidas administrativas lesivas de direitos, liberdades e garantias – desde logo, ao direito à liberdade, na vertente da circulação e de não se ficar circunscrito a um determinado local (habitaçãoouquartodehotel,porexemplo)–, respeitanecessariamente à disciplina de tal matéria; a validação judicial só se justifica por estar em causa uma liberdade fundamental, sendo evidente a conexão entre a garantia judicial instituída no n.º 6 da Resolução em análise e a ingerência no referido direito consequente da determinação de quarentena obrigatória ou de isolamento profilático. As medidas de confinamento obrigatório – quarentena e isolamento profilático – decretadas pela autoridade regional de saúde (que a norma objeto dos presentes autos exige que sejam submetidas a validação judicial) constituem, em si mesmas, pelos constrangimentos que implicam para os visados (o confinamento a um espaço circunscrito, com a consequente restrição à liberdade de circulação e de movimentação), uma restrição ao direito à liberdade, previsto no artigo 27.º da Constituição. A norma ora questionada, embora não estabeleça qualquer privação da liberdade, ao sujeitar a validação judicial as citadas medidas de confinamento obrigatório decretadas pela autoridade regional de saúde – que são medidas administrativas lesivas do direito à liberdade das pessoas visadas –, está a disciplinar matéria respeitante ao regime dos direitos, liberdades e garantias, mais concretamente, matéria atinente ao direito à liberdade consagrado no referido artigo 27.º da Constituição; a validação judicial é instituída porque está em causa uma liberdade pessoal fundamental e destina-se a garantir que a limitação de tal liberdade só ocorre nos casos normativamente

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 17 previstos; a validação judicial em apreço é, deste modo, uma medida de controlo da legalidade de medidas administrativas lesivas do direito à liberdade. A matéria sobre que incide o n.º 6 da Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020 encontra-se abrangida pela reserva de competência legislativa da Assembleia da República prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição; sendo certo que a competência para legislar sobre tal matéria só pode ser objeto de autorização ao Governo (da República), e não ao Governo Regional, é de concluir pela inconstitucionalidade orgânica da norma cuja aplicação foi recusada. Acresce ainda que a norma objeto do presente recurso, ao criar um procedimento de validação judicial de medidas de confinamento decretadas pela autoridade regional de saúde, estabeleceu, inovatoriamente, um procedimento de natureza jurisdicional, destinado a validar aquele tipo de medidas decretadas pelas autoridades administrativas de saúde; fêlo à margem dos regimes adjetivos existentes, bem como das leis relativas à organização judiciária e à definição das competências dos tribunais, e embora se limite a referir que a validação da medida de quarentena obrigatória cabe ao tribunal competente, a verdade é que atribui aos tribunais uma nova competência, no âmbito de um procedimento criado ex novo, e com uma finalidade específica: a validação judicial de certas medidas, que tipifica, adotada pelas autoridades regionais de saúde. Uma vez que a norma objeto deste recurso foi editada pelo Governo Regional, sem autorização legislativa para tal, e sendo ainda certo que a competência para legislar em tal matéria só poderia ser objeto de autorização ao Governo da República e não ao Governo Regional, é de concluir, também por esta razão, pela inconstitucionalidade orgânica da referida norma, por violação da alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. “Uma vez que a norma objeto deste recurso foi editada pelo Governo Regional, sem autorização legislativa para tal, e sendo ainda certo que a competência para legislar em tal matéria só poderia ser objeto de autorização ao Governo da República e não ao Governo Regional, é de concluir, também por esta razão, pela inconstitucionalidade orgânica da referida norma, por violação da alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.”

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 18 Plenário Fiscalização Abstrata Sucessiva CÓDIGO DO TRABALHO Acórdão n.º 318/2021 | 18 maio 2021 No dia 18 de maio de 2021, foi proferido o Acórdão n.º 318/2021 que apreciou um pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de certas normas do Código do Trabalho, introduzidas pela Lei n.º 93/2019, de 4 de setembro, pedido esse que foi apresentado por um grupo de 35 deputados à Assembleia da República. Estavam em causa, essencialmente, três questões: o alargamento do período experimental para 180 dias (artigo 112.º); as circunstâncias em que podem ser celebrados contratos de muito curta duração (artigo 142.º); e a cessação da vigência de convenções coletivas por extinção da associação sindical ou da associação de empregadores outorgantes (artigo 502.º). Quanto ao alargamento do período experimental, o Tribunal Constitucional decidiu não declarar a inconstitucionalidade da norma com uma pequena ressalva referida no ponto seguinte, não dando por verificada a violação dos princípios da proporcionalidade e da igualdade. As razões principais em que assenta esta parte da decisão encontram-se nos pontos 2.2.4. a 2.3.2. do Acórdão. Não obstante, o Tribunal decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que consagrou o período experimental alargado a 180 dias, na parte que se refereaos trabalhadores queestejam à procura do primeiro emprego, quando aplicável a trabalhadores que anteriormente tenham sido contratados, com termo, por um período igual ou superior a 90 dias, por outro(s) empregador(es), por violação do princípio da igualdade. As razões principais em que assenta esta parte da decisão encontram-se no ponto 2.3.3. do Acórdão. Quanto às circunstâncias em que podem ser celebrados contratos de muito curta duração que, entre outras alterações, deixaram de estar circunscritas aos setores do turismo e da agricultura, o Tribunal Constitucional decidiu não declarar a inconstitucionalidade da norma, não dando por verificada a violação dos princípios da proporcionalidade e da igualdade. As razões principais em que assenta esta parte da decisão encontramse nos pontos 2.5.2. a 2.6.1. do Acórdão. “(…) o Tribunal decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que consagrou o período experimental alargado a 180 dias, na parte que se refere aos trabalhadores que estejam à procura do primeiro emprego, quando aplicável a trabalhadores que anteriormente tenham sido contratados, com termo quando aplicável a trabalhadores que anteriormente tenham sido contratados, com termo, por um período igual ou superior a 90 dias, por outro(s) empregador(es), por violação do princípio da igualdade.”

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 19 A maioria dos juízes entendeu que a execução da declaração do estado de emergência, compreendendo todas as «providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional», é uma competência diretamente fundada no n.º 8 do artigo 19.º da Constituição. Uma vez declarado um estado de emergência ou um estado de sítio, o Executivo passa a atuar no quadro de uma organização excecional do poder público, podendo não só editar normas na matéria dos direitos, liberdades e garantias abrangidas pelo decreto presidencial, como tomar providências em matéria de crimes e penas estreitamente relacionadas com a sua função de defesa da ordem constitucional. Entendeu-se que não se trata aqui de nenhumaafetaçãodas«regrasconstitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania», proibida pelo n.º 7 do artigo 19.º da Constituição, uma vez que este poder normativo é absolutamente excecional e não inibe o uso regular do poder legislativo normal. O seu exercício baseia-se num título extraordinário (a declaração do estado de exceção), reveste carácter temporário (a vigência do decreto presidencial) e é orientado a uma finalidade específica (a restauração da normalidade constitucional). O Executivo opera, neste quadro constitucional especialíssimo, como um legislador extraordinário ex ratione necessitatis. 3.ª Secção Fiscalização Concreta | Recurso RECOLHIMENTO DOMICILIÁRIO | COVID-19 Acórdão n.º 352/2021 | 27 maio 2021 No dia 27 de maio de 2021, foi proferido o Acórdão n.º 352/2021, pela 3.ª Secção do Tribunal Constitucional, que apreciou o recurso obrigatório do Ministério Público de uma sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte em que se recusou a aplicação da norma do n.º 6 do artigo 43.º do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, que manda agravar em um terço os limites mínimo e máximo da moldura penal do crime de desobediência previsto e punido pela alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal. No caso dos autos, tratou-se de desobediência a ordem de «recolhimento domiciliário». O Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, é um diploma regulamentar emitido pelo Governo no quadro da sua competência de execução do Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril, que renovou a declaração de estado de emergência constante do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março. A questão fundamental do recurso era a de saber se o Governo tem competência própria, no quadro da execução da declaração presidencial do estado de emergência, para decretar normas em matéria de crimes e penas que integra a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição −, designadamente agravando os limites mínimo e máximo da moldura penal do crime de desobediência. Quanto à caducidade das convenções coletivas por extinção da associação sindical ou da associação de empregadores outorgantes, o Tribunal Constitucional entendeu que, face ao estatuído no artigo 56.º, n.ºs 3 e 4, da Constituição, o legislador tem liberdade para regular a matéria em causa, sem que tenha atingido o núcleo essencial do direito à contratação coletiva. As razões principais em que assenta esta parte da decisão encontram--se nos pontos 2.8.1. a 2.8.3. do Acórdão.

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 20 Enfatizou-se ainda que este poder normativo de emergência cometido ao Executivo na vigência de um estado de exceção constitucional não é arbitrário ou absoluto: no plano material, encontra-se vinculado ao princípio da proporcionalidade, plenamente operativo no momento da execução do estado de exceção e suscetível de controlo judicial; no plano institucional, o Governo responde perante o Presidente da República e a Assembleia da República (artigo 190.º da Constituição), sendo a aplicação da declaração de estado de sítio ou de estado de emergência objeto específico de fiscalização parlamentar [alínea b do artigo 162.º]. Em face do exposto, decidiu não julgar inconstitucional a norma do n.º 6 do artigo 43.º do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril. “Entendeu-se que não se trata aqui de nenhuma afetação das «regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania», proibida pelo n.º 7 do artigo 19.º da Constituição, uma vez que este poder normativo é absolutamente excecional e não inibe o uso regular do poder legislativo normal. O seu exercício baseia-se num título extraordinário (a declaração do estado de exceção), reveste caráter temporário (a vigência do decreto presidencial) e é orientado a uma finalidade específica (a restauração da normalidade constitucional).”

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 21 normas legais não têm densidade suficiente para a apreciação do primeiro fundamento. O Tribunal constatou que a Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, diz toda ela respeito a matéria de direitos, liberdades e garantias, objeto da reserva de competência legislativa consagrada na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, uma vez que «estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das características» e reconduz o exercício deste(s) direito(s) ao livre desenvolvimento da personalidade e à identidade pessoal do titular, objetos de direitos fundamentais expressamente consagrados no n.º 1 do artigo 26.º da Constituição e inseridos no catálogo de direitos, liberdades e garantias do Título II da Parte I. Assim, o conteúdo constante no diploma não pode ser definido através de regulamento administrativo, por se tratar de competência legislativa reservada da Assembleia da República. Por conseguinte, declarou a inconstitucionalidade das normas, com fundamento na violação da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. Salienta-se que o Tribunal não se pronunciou sobre a substância daquelas normas, no que diz respeito à proibição da programação ideológica do ensino pelo Estado e à liberdade de programação do ensino particular. Esta decisão deixou, assim, intocada a garantia do direito à identidade de género e de expressão de género e a proibição de discriminação no sistema educativo. Plenário Fiscalização Abstrata Sucessiva AUTODETERMINAÇÃO DA IDENTIDADE DE GÉNERO Acórdão n.º 474/2021 | 29 junho 2021 No dia 29 de junho de 2021, foi proferido pelo Plenário do Tribunal Constitucional o Acórdão n.º 474/2021 que apreciou a constitucionalidade das normas constantes dos n.ºs 1 e 3 do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, relativas à adoção pelo Estado de «medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género» e que foram objeto do pedido de fiscalização da constitucionalidade. Os requerentes invocaram dois fundamentos para a declaração de inconstitucionalidade. Por um lado, a proibição da programação ideológica do ensino pelo Estado e a liberdade de programação do ensino particular, segundo o disposto no n.º 2 do artigo 43.º da Constituição, uma vez que entendiam que o regime reflete uma «ideologia de género». Por outro lado, a violação da reserva de lei parlamentar, uma vez que as normas em causa reenviam para regulamento administrativo matéria sob reserva de competência legislativa da Assembleia da República. O Tribunal começou a apreciação do pedido pelo segundo dos fundamentos invocados. Entendeu-se que se, como defendiam os requerentes, a definição do conteúdo das medidas de proteção previstas na lei tem lugar, não no nível do diploma legal que as prevê, mas no nível administrativo para o qual este reenvia a sua regulamentação, a principal questão de constitucionalidade diz respeito a saber se o objeto do reenvio integra a reserva de lei. Sendo esse o caso, as

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 22 de suspensão da prescrição prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2000. O Tribunal considerou que as normas que estabelecem as causas de suspensão da prescrição, embora não contempladas diretamente pela letra do artigo 29.º daConstituição, se encontram abrangidas, em princípio, pela proibição de aplicação retroativa da lei de conteúdo desfavorável, compreendida à luz dos fundamentos do princípio da legalidade penal. Tal conclusão resultou de duas ideias essenciais. Em primeiro lugar, as garantias inerentes à proibição da retroatividade desfavorável destinamse a proteger o indivíduo contra o abuso de poder, sendo plenamente invocáveis sempre que o Estado se proponha mitigar, através da ampliação retroativa do elenco das causas de suspensão da prescrição, os efeitos da sua inércia na administração da justiça. Em segundo lugar, visa garantir ao destinatário da norma uma previsibilidade razoável das consequências com que se deparará ao violar o preceito penal, previsibilidade essa que, em regra, é afetada quando se modificam as condições em que uma infração praticada pode ser sancionada. 3.ª Secção Fiscalização Concreta | Recurso PRAZOS DE PRESCRIÇÃO DE CRIMES E CONTRAORDENAÇÕES | COVID-19 Acórdão n.º 500/2021 | 9 julho 2021 No dia 9 de julho de 2021, foi proferido o Acórdão n.º 500/2021, pela 3.ª Secção doTribunal Constitucional, queapreciou um recurso interposto de uma decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa que, aplicando o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19demarço, julgou não verificada a prescrição do procedimento contraordenacional instaurado contra o recorrente pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. Aqueles preceitos previam a suspensão dos prazos de prescrição de crimes e contraordenações como medida de resposta à pandemia da doença Covid-19. Tendo em conta que a norma em questão não foi decretada no uso de um poder de emergência constitucional, o Tribunal entendeu que a respetiva validade não podia ser aferida à luz do n.º 6 do artigo 19.º da Constituição, que se dirige exclusivamente ao poder de declaração do estado de sítio ou do estado de emergência atribuído ao Presidente da República. A questão fundamental do recurso era a de saber se o artigo 29.º da Constituição, ao estatuir que «[n] inguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão» (n.º 1), nem sofrer «penas que não estejam expressamente cominadas em lei anterior» (n.º 3) ou «mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos» (n.º 4), se opõe à aplicação imediata aos procedimentos pendentes da causa

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 23 O Tribunal entendeu, porém, que a causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, pela sua singularidade, escapa totalmente a ambas as razões com base nas quais se justifica a aplicação da proibição da retroatividade às normas sobre prescrição. Assim é porque se trata de uma medida transitória, destinada a vigorar apenas e só durante o período em que se mantivesse o condicionamento à atividade dos tribunais, determinado pela situação excecional de emergência sanitária, condicionamento este indispensável para que o Estado pudesse cumprir o seu dever de proteção da vida e da integridade física de todos os cidadãos intervenientes no sistema de administração da justiça, incluindo dos próprios arguidos. Estas considerações valem, por maioria de razão, para os procedimentos pendentes de natureza contraordenacional, domínio em que, como decorre de jurisprudência firme, as exigências decorrentes do princípio da legalidade penal não se impõem com o mesmo grau de intensidade. “(…) porque se trata de uma medida transitória, destinada a vigorar apenas e só durante o período em que se mantivesse o condicionamento à atividade dos tribunais, determinado pela situação excecional de emergência sanitária, condicionamento este indispensável para que o Estado pudesse cumprir o seu dever de proteção da vida e da integridade física de todos os cidadãos intervenientes no sistema de administração da justiça, incluindo dos próprios arguidos.”

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 24 Plenário Fiscalização Abstrata Sucessiva ESTATUTOS DA CASA DO DOURO Acórdão n.º 522/2021 | 13 julho 2021 O Tribunal Constitucional, na sessão Plenária de 13 de julho de 2021, apreciou um pedido de fiscalização sucessiva abstrata das normas dos artigos 1.º e 7.º da Lei n.º 73/2019, de 2 de setembro, dos artigos 1.º, 3.º e 4.º dos Estatutos da Casa do Douro, aprovados pela mesma lei e dela constantes em anexo e, indireta ou consequencialmente, das demais normas do mesmo diploma insuscetíveis de subsistir autonomamente sem aquelas, apresentado por um grupo de trinta e oito deputados à Assembleia da República. Em causa estavam, no essencial, normas relativas à natureza jurídica da Casa do Douro, que a regulam enquanto associação pública, reinstituída pela dita legislação, nomeadamente no que respeita à compatibilidade de tal caracterização com as normas constitucionais alojadas nos artigos 46.º, n.º 3, 18.º, n.º 3, e 267º, n.º 4, e ainda com o princípio da igualdade. Isto, porque de tais normas resultava limitada a liberdade de associação, em termos lesivos do princípio da proporcionalidade. O Tribunal declarou a inconstitucionalidade das normas submetidas a apreciação, por as considerar violadoras dos preceitos constitucionais mencionados, e fixou, ao abrigo do n.º 4 do artigo 282.º, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, limitando-os temporalmente a partir da data da publicação oficial do presente Acórdão. “O Tribunal declarou a inconstitucionalidade das normas submetidas a apreciação, por as considerar violadoras dos preceitos constitucionais mencionados, e fixou, ao abrigo do n.º 4 do artigo 282.º, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade.”

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 25 Mais decidiu o Tribunal ressalvar, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, por motivos de segurança jurídica e de equidade, os efeitos produzidos até à publicação deste acórdão em Diário da República pelas normas que declarou inconstitucionais. O restante pedido do Primeiro-Ministro não obteve provimento do Tribunal. A decisão foi aprovada por unanimidade dos juízes do Tribunal em exercício de funções. Plenário Fiscalização Abstrata Sucessiva APOIOS SOCIAIS | MEDIDAS EXCECIONAIS COVID-19 Acórdão n.º 545/2021 | 14 julho 2021 O Tribunal Constitucional, reunido em Plenário, apreciou e decidiu um pedido de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade da autoria do PrimeiroMinistro (Processo n.º 356/2021) que tinha por objeto diversas normas constantes das Leis n.ºs 15/2021 e 16/2021, ambas de 7 de abril, aprovadas pela Assembleia da República. Tais normas consagraram três tipos de medidas: apoio no âmbito da suspensão de atividade letivas e não letivas presenciais; apoio excecional à família; e medidas excecionais por redução forçada da atividade económica e de incentivo à atividade profissional. Analisadas as normas em causa, o Tribunal decidiu declarar a inconstitucionalidade: a) Da norma alojada no artigo 3.º da Lei n.º 16/2021, por entender que ela implicava, em parte, um aumento de despesas no corrente ano económico, no quadro da apreciação parlamentar de atos legislativos, ofendendo os artigos 167.º, n.º 2, e 169.º, n.º 1, da Constituição; b) Da norma alojada no artigo 2.º da Lei n.º 16/2021, por entender que ela implicava também, emparte, umaumentodedespesas no corrente ano económico, em violação do n.º 2 do artigo 167.º da Constituição; c) Da norma alojada no artigo 2.º da Lei n.º 15/2021, por entender que ela implicava, em parte, um aumento de despesas no corrente ano económico, no quadro da apreciação parlamentar de atos legislativos, ofendendo o artigo 167.º, n.º 2, da Constituição.

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 26 Plenário Fiscalização Preventiva LEI DO CIBERCRIME Acórdão n.º 687/2021 | 30 agosto 2021 O Tribunal Constitucional, reunido em Plenário a 30 de agosto de 2021, apreciou um pedido de fiscalização abstrata preventiva da constitucionalidade, da autoria do Presidente da República, que tinha por objeto as normas do artigo 5.º do Decreto n.º 167/XIV, da Assembleia da República, na parte em que altera o artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (conhecida como Lei do Cibercrime). O artigo 17.º da Lei do Cibercrime contém o regime jurídico relativo à apreensão de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhante. As alterações introduzidaspeloartigo5.º doDecreton.º 167/XIV respeitam, em primeiro lugar, ao órgão competente e às formalidades exigíveis para apreensão de correio eletrónico ou similar. Onde a atual versão da norma prevê uma competência exclusiva do juiz, a versão constante do Decreto refere-se à autoridade judiciária competente, expressão suscetível de abranger também o Ministério Público. Há ainda mudanças relevantesnoque tocaàdefiniçãodoobjetodasapreensões e na remissão para o disposto no artigo 179.º do Código de Processo Penal (que contém o regime jurídico aplicável à apreensão de correspondência). Analisadas as normas em causa, o Tribunal decidiu pronunciar-se, pela sua inconstitucionalidade, por violação das normas constantes dos artigos 26.º, n.º 1, 34.º, n.º 1, 35.º, n.ºs 1 e 4, 32.º, n.º 4, e 18.º, n.º 2, da Constituição da RepúblicaPortuguesa. Istoporquede tais normas resultava, por um lado, uma restrição dos direitos fundamentais à inviolabilidade da correspondência e das comunicações e à proteção dos dados pessoais no âmbito da utilização da informática, enquanto manifestações específicas do direito à reserva de intimidade da vida privada, em termos lesivos do princípio da proporcionalidade; e, por outro lado, uma violação do princípio da reserva de juiz e das garantias constitucionais de defesa em processo penal. A decisão do Tribunal foi tomada por unanimidade dos sete juízes que integram o 1.º turno em período de férias judiciais. “Analisadas as normas em causa, o Tribunal decidiu pronunciar-se, por unanimidade, pela sua inconstitucionalidade, por violação das normas constantes dos artigos 26.º, n.º 1, 34.º, n.º 1, 35.º, n.ºs 1 e 4, 32.º, n.º 4, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.”

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2021 | 27 1.ª Secção Fiscalização Concreta | Recurso OBRIGAÇÃO DE CONFINAMENTO | COVID-19 Acórdão n.º 921/2021 | 9 dezembro 2021 OTribunalConstitucional, emsessãode julgamentoda1.ªSecção, apreciouumrecursodeconstitucionalidade que teve por objeto a norma contida no artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, por referência ao disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, da Presidência do Conselho de Ministros, no segmento que pune como crime de desobediência a violação da obrigação de confinamento. Factos e contexto da intervenção do Tribunal Constitucional Um cidadão teve contacto com uma pessoa infetada com a doença COVID-19. Vigorava, nesse momento, o Estado de Emergência, em virtude da situação de pandemia daquela doença. A autoridade de saúde determinou o isolamento profilático do cidadão no seu domicílio durante 14 dias, mas ele ausentou-se. OEstadodeEmergênciaédeclaradopeloPresidente da República, autorizado pela Assembleia da República, e é executado pelo Governo, através de regras previstas em Decreto. O Governo, no seu Decreto, estabeleceu que a violação da obrigação de confinamento determinado pelas autoridades de saúde acarretava a prática de um crime de desobediência. Com base nessa previsão, o cidadão em causa foi julgado em processo criminal, acusado de desobediência. Todavia, o Juízo Criminal recusou aplicar a norma do Decreto do Governo, por entender que estava em causa um crime novo, que o Governo não tinha competência para criar, e absolveu o arguido. O Ministério Público recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional. Solução que o Tribunal Constitucional deu à questão II.A. O Tribunal começou por contextualizar a questão que lhe foi colocada, descrevendo o aparecimento da pandemia de COVID-19 e as medidas adotadas pelos órgãos constitucionais, incluindo a declaração do Estado de Emergência. II.B. De seguida, o Tribunal colocou uma primeira questão a decidir: a do caráter inovador da previsão do crime de desobediência. Uma vez que Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência (aprovado pela Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, doravante referido como RESEE) prevê, no seu artigo 7.º, um crime de desobediência pela “violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela”, o Governo só teria excedido os seus poderes se tivesse atuado além do que essa mesma norma já previa. II.C. O Acórdão começou por entender que o legislador não pretendeu restringir o crime previsto no RESEE à desobediência ao próprio RESEE e ao Decreto do Presidente da República que declara o Estado de Emergência. Afirmou, pois, que o crime de desobediência previsto no RESEE pode ser praticado por qualquer pessoa e inclui a desobediência a determinações a regras aprovadas pelo Governo para executar o Estado de Emergência. II I

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