TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010

163 ACÓRDÃO N.º 75/10 princípio, daquela modalidade de intervenção interruptiva da gravidez, ele recai também sobre algumas opções legislativas expressas na malha de preceitos que dão unitariamente forma legal precisa e acabada à disciplina daquele acto. Nessa medida, o Tribunal confronta-se agora com questões novas. Mas, mesmo em relação à questão já objecto dos Acórdãos n. os 288/98 e 617/06, o presente recurso apresenta uma específica dimensão inovatória, que cumpre precisar. Naqueles Acórdãos, em juízo esteve, fundamentalmente, a admissibilidade de se prescindir, dentro das primeiras 10 semanas de gestação, da indicação, como causas justificativas, de determinadas circunstâncias, de verificação objectivamente controlável. Ora, entre as normas impugnadas no presente recurso, figura primariamente a que se aloja na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, introduzida pelo artigo 1.º da Lei n.º 16/2007. Em conjugação com o proémio desse número, nela se determina que “não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando for realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez”. Trata-se de uma disposição normativa vestibular, que abre a porta a ulteriores regulações com ela conexionadas, só em conjunto se definindo, com completude, os traços da solução agora consagrada no ordenamento jurídico-penal português. Mas, poder-se-ia dizer que a previsão e a estatuição daquela alínea e) , em si mesmas, coincidem, no essencial, com a proposição normativa sobre que os referidos acórdãos já se pronunciaram. A identidade de enunciados e dos campos problemáticos em que se inserem não deve, todavia, iludir quanto à diversidade das questões suscitadas. Para consciencializar essa diferença, é imperioso atender aos distintos planos e contextos em que se situaram aqueles dois arestos, por confronto com os que se nos deparam nos presentes autos. Os Acórdãos n. os 288/98 e 617/06 deram resposta à questão da constitucionalidade de uma proposta referendária. O objecto da consulta a submeter ao voto dos cidadãos reportava-se a uma opção programática, a uma simples potencialidade de normação futura, visando obter a expressão de concordância ou não com uma possível reforma legislativa, apontada sinteticamente, pela opção de fundo que maximamente a carac- terizava. Uma eventual resposta afirmativa não efectivaria, por si só, qualquer mudança na ordem jurídica, apenas legitimaria a intervenção, nesse sentido, do legislador, cabendo a este a conformação última do regime concretizador dessa mudança. E, tratando-se de um regime que coenvolve condições substantivas e procedi- mentais de não punibilidade de um acto e regras organizatórias do exercício do direito a prestações estaduais necessárias para a sua realização, com múltiplas variantes hipoteticamente possíveis, era impensável que a pergunta referendária já contivesse, de forma esgotante, as soluções concretas a adoptar, nesse domínio (cfr., nesse sentido, o Acórdão n.º 617/06 e a declaração de voto da Conselheira Maria dos Prazeres Beleza). É particularmente nítido, em face de alterações legislativas deste tipo, que “o controlo preventivo da constitucionalidade e da legalidade das propostas de referendo não consome a fiscalização [preventiva] da lei subsequente que o vier concretizar” (Gomes Canotilho, “Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 617/06”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência , ano 136.º, 2007, pp. 311 a 317). Por isso mesmo, o juízo de não inconstitucionalidade que recaiu sobre ambas as propostas referendárias se contentou com a conclusão de que «nenhuma das respostas – afirmativa ou negativa – à pergunta formula- da implica necessariamente uma solução jurídica incompatível com a Constituição» – alínea j) da decisão do Acórdão n.º 288/98 e alínea i) da decisão do Acórdão n.º 617/06. Para fundar um juízo de não inconstitu- cionalidade da consulta referendária bastou admitir que o sentido da resposta não fechava a porta a qualquer ulterior solução jurídica conforme à Constituição, ou, como se diz no último dos referidos Acórdãos, que “nada permite concluir que, em caso de resposta afirmativa no referendo, [medidas suficientes de protecção] não possam vir a constar da legislação aprovada, na sua sequência”. O objecto do presente recurso é precisamente parte do complexo normativo que dá corpo à reforma legislativa referendada. A previsão de uma nova modalidade de intervenção abortiva não punível, constante

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