TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010

164 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, já não vem agora, como na pergunta do referendo, descarnadamente formulada, sem mais indicações normativas a ela associadas. Ela é apenas uma componente – posto que componente essencial – de um mais amplo sistema regulador. Sistema que contém aspectos da disciplina legal que constituem relevantes factores de ponderação da existência e da medida de um nível de protecção constitucionalmente adequado da vida pré-natal – o que, não é de mais lembrá-lo, figura como a questão nuclear suscitada pelo recurso em apreciação. Com esses elementos normativos certos e actuais (por constantes da disciplina em vigor), e não mera- mente conjecturáveis como de consagração futura, fechou-se o círculo deixado em aberto pela questão de que se ocuparam os dois precedentes Acórdãos. O Tribunal está agora em condições de formular um juízo quanto à validade constitucional de um complexo normativo totalizantemente regulador, com uma unidade de sentido que lhe é dada pela coligação de uma proposição normativa de base – a da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal – com disposições complementares, a ela associadas. Já não está em causa simplesmente a admissibilidade, de princípio, da directriz basilar do modelo de prazos, mas a admissibilidade de uma certa forma legislativa de concretização dessa orientação. Sendo assim, os aspectos modais que dão rosto acabado ao regime despenalizador, com relevância para o juízo de consti- tucionalidade, devem ser sopesados em simultâneo, pois também eles concorrem para a definição normativa do padrão de conduta tido como dispensador da criminalização. A valoração conjunta de todos esses dados normativos é produtiva de sentido, e de sentido relevante para a determinação precisa das concepções que inspiraram o regime em apreço e da intencionalidade que presidiu à sua consagração. O pedido destaca autonomamente, como vimos, a questão primária da não punibilidade da inter- venção voluntária da gravidez, em determinado período inicial, por opção da mulher, sem necessidade de justificação. São, mesmo, invocados os resultados do referendo, a que é atribuído “grande valor ‘consultivo’”, demonstrativo de que “só 25% dos portugueses quer o aborto livre em Portugal”, para fundamentar que “se volte a apreciar” a questão. Mas essa questão não pode ser reposta nos mesmos termos em que anteriormente, nos Acórdãos n. os 288/98 e 617/06, esteve em juízo. Tendo entrado em vigor uma regulação legislativa, em concreto, dos procedimentos a observar como condição de impunibilidade da interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher, a consagração desta nova modalidade de interrupção não sancionável criminalmente não pode ser encarada em abstracto e isoladamente, de forma estanque às inferências de sentido que advêm dessa regulação. Tal só se justificaria se o Tribunal entendesse que uma solução correspondente ao modelo dos prazos nunca, qualquer que seja a sua conformação concretizadora, pode satisfazer o mandamento constitucional aplicável, ou, inversamente, que ela é sempre , independentemente da existência e da natureza de mecanismos de tutela da vida intra-uterina, constitucionalmente conforme. O Tribunal não adopta, porém, nenhuma destas duas posições, em radical oposição bipolar. A primeira traduziria uma ruptura com a linha de orientação e com as decisões adoptadas nos Acórdãos n. os 288/98 e 617/06. Ora, não se produziu, com vencimento, qualquer divergência com as concepções que informam aqueles arestos, mantendo o Tribunal integralmente o entendimento de que o dever de protecção da vida intra-uterina, que sobre o Estado recai, não exige, como conteúdo mínimo, numa fase inicial, a invocação de razões, taxativamente indicadas, para lhe pôr termo. A segunda posição decorre da assunção de que, nessa fase, o Estado pode alhear-se do destino do feto, sem que se lhe imponha, em relação a esse período, qualquer dever de emissão de normas de protecção. Aindanão haveria, nessa fase, qualquer conflito entre bens constitucionalmente protegidos, pelo que a deci­ são da gestante em abortar, do seu estrito foro pessoal, seria livre e incondicionada – como ainda hoje se reconhece, malgrado todas as contestações, no sistema jurídico norte-americano, na sequência da juris- prudência firmada pelo Supreme Court , no caso Roe v. Wade , de 1973. Também esta solução não merece acolhimento. O Tribunal perfilha o entendimento contrário de que a vida intra-uterina é um bem digno de tutela em todas as fases pré-natais, sem prejuízo de admitir diferentes níveis e formas de protecção, em correspondência com a progressiva formação do novo ente.

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