TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
166 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Todavia, essa protecção da vida humana em gestação não terá de assumir o mesmo grau de densificação nem as mesmas modalidades que a protecção do direito à vida individualmente subjectivado em cada ser humano já nascido – em cada pessoa”. Finalmente, no Acórdão n.º 617/06, exarou-se: “Da inviolabilidade da vida humana como fórmula de tutela jurídica não deriva, desde logo, que a protecção contra agressões postule um direito subjectivo do feto ou que não seja de distinguir um direito subjectivo à vida de uma protecção objectiva da vida intra-uterina, como resulta da jurisprudência constitucional portuguesa e de outros países europeus. O facto de o feto ser tutelado em nome da dignidade da vida humana não significa que haja título idêntico ao reconhecido a partir do nascimento”. OTribunal não vê fundamento para rever esta posição, que sempre tem perfilhado. Sem dúvida nenhuma que o feto é digno de protecção pela sua potencialidade em se tornar uma pessoa, um “eu” consciente da sua individualidade própria, mas, como acentuou Ovadia Ezra, “a potencialidade de aquisição de um determi- nado estatuto não confere a titularidade dos direitos associados a esse estatuto” ( The Withdrawal of Rights. Rights from a Different Perspective , Dordrecht/Boston/London, 2002, p. 204). Sendo assim, uma resposta negativa, quanto ao cumprimento, pelo Estado, do seu dever de protecção, só poderá ser emitida se se concluir que o regime em apreço não traduz um suficiente respeito pela valia intrínseca da vida humana. 11.4.3. O tratamento da questão assim enunciada não pode passar sem uma alusão, perfunctória embora,à dogmática dos imperativos jurídico-constitucionais de protecção, reportada à inviolabilidade da vida intra-uterina, enquanto bem objectivo. O Estado não está apenas obrigado ao respeito da vida pré-natal, abstendo-se de qualquer acção sus- ceptível de acarretar a destruição do seu desenvolvimento no ventre materno. Sobre ele recai também uma vinculação a prestações satisfatórias da “garantia de efectivação” (artigo 2.º da CRP) de tal valor, designa- damente contra potenciais agressões de terceiros ou da própria gestante – dimensão sobre que, atenta a sua natureza, repousa o essencial da consistência prática do bem em causa. Esta injunção constitucional comporta seguramente o dever de adopção de medidas preventivas, numa dupla direcção: a de evitar situações de gravidez indesejada [em que se insere a garantia do “direito ao pla- neamento familiar” consagrada na alínea d) do n.º 2 do artigo 67.º da CRP] e a de contrariar motivações abortivas, uma vez iniciado esse estado. Aqui se incluem também medidas incentivadoras, sem esquecer as que visam o exercício (mas também, antes dele, a assunção) de uma maternidade consciente (cfr. a mesma alínea), as quais têm uma iniludível projecção irradiante, de sentido tutelador, neste campo. É neste vasto e diversificado universo de normas e de estruturas (também) de protecção do bem da vida pré-natal que se incrusta a regulação do acto específico de interrupção voluntária da gravidez, onde predomi- nam os instrumentos de direito penal. Na fixação dessa disciplina, goza o legislador ordinário de uma ampla margem de discricionariedade legislativa, balizada por dois limites ou proibições, de sinal contrário. Ele deve, por um lado, não des respeitar a proibição do excesso, por afectação, para além do admissível, da posição jurídico-constitucional da mulher grávida, nas suas componentes jusfundamentais do direito à vida e à integridade física e moral, à liberdade, à dignidade pessoal e à autodeterminação. Mas também deve, no pólo oposto, não descurar o valorobjectivo da vida humana, que confere ao nascituro (à sua potencialidade de, pelo nascimento, aceder a uma existência autonomamente vivente) dignidade constitucional, como bem merecedor de tutela jurídica. O cumprimento desse dever está sujeito a uma medida mínima, sendo violada a proibição de insuficiência (“ Untermassverbot ”) quando as normas de protecção ficarem aquém do constitucionalmente exigível.
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=