TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010

167 ACÓRDÃO N.º 75/10 Como a doutrina tem justamente salientado – cfr. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte , Frankfurt am Main, 1986, pp. 420-422, e Claus-Wilhelm Canaris, Direitos fundamentais e direito privado , Coimbra, 2003, pp. 65-66, e 115-116 – do ponto de vista da liberdade de actuação estadual e, em particular, de conformação legislativa, é grande a diferença estrutural entre os deveres negativos, de abstenção, e os positivos, de activa intervenção tuteladora. No domínio dos primeiros, assente que uma certa e determinada medida é ofensiva de um direito fundamental, o dever de a omitir impõe-se, prima facie . Isto porque a proibição de aniquilar ou afectar esse direito abrange toda e qualquer ingerência com tal virtualidade, incluindo, portanto, aquela específica medida que está em apreciação. Inversamente, o dever de protecção não importa a automática ordenação de todas as iniciativas a que seja de imputar esse resultado. E isto porque, enquanto que a proibição de ingerência só se cumpre com a omissão de todas as acções de destruição ou afectação, a realização de uma só acção adequada de protecção ou promoção é condição suficiente do cumprimento do mandato constitucional nesse sentido. Quando são adequadas diferentes acções de protecção ou promoção, nenhuma delas é, de per si, necessária para o cumprimento desse mandato: a única exigência é que se realize uma delas, pertencendo a escolha ao Estado. Somente se existir uma única acção suficiente de promoção ou protecção é que ela se torna necessária para o cumprimento do dever de protecção. O que se retira da Constituição é apenas o dever de proteger, não estando predeterminado, nessa sede, um específico modo de protecção. Já Otto Bachof, em texto hoje clássico, o pôs em destaque, salientando que nenhum dos concretos problemas regulativos postos pela protecção da vida ainda por nascer encontra “resposta imediata na Constituição”, pelo que, para a sua decisão, “o legislador há-de dispor consequen­ temente de uma larga margem de liberdade” – “Estado de direito e poder político: os tribunais constitucio- nais entre o direito e a política”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra , vol. LVI (1980), pp. 1 a 19. As inevitáveis opções a fazer, neste domínio, são, pois, pertença do legislador ordinário, sendo este colo­ cado perante um espectro de soluções normativas de alcance distinto e de desigual intensidade tuteladora. Dentro desse espectro, a incriminação representa, em regra, o grau máximo de protecção. Mas também, simultaneamente, a lesão, na maior medida, de direitos encabeçados pelo sujeito penalizado, mormente quando, como neste caso, a verificação do tipo acarreta privação da liberdade. É no campo de valoração delimitado pela proibição do excesso e pela contraposta proibição de insu- ficiência que o legislador tem que exercitar a sua competência de modelação da disciplina da interrupção voluntária da gravidez. Podendo optar por consagrar uma protecção superior ao mínimo que lhe é jurídico- -constitucionalmente imposto, o legislador não pode ultrapassar os limites que resultam da proibição do excesso (em último termo, do princípio da proporcionalidade). Só serão constitucionalmente conformes as soluções que respeitem ambas as proibições. 11.4.4. Na apreciação, à luz destes parâmetros, da solução que está especificamente sob escrutínio, nos presentes autos, não poderemos considerá-la isoladamente, sem ter em conta o modo como, na sua totali- dade, foi traçada a disciplina da interrupção voluntária da gravidez (e, até, o conjunto de medidas que, fora deste campo, contribuem para uma redução do número de abortos). É “na sua globalidade e no seu funcio- namento conjunto” que as medidas de direito infraconstitucional devem assegurar uma protecção eficiente dos direitos fundamentais, como sustenta Canaris ( ob. cit ., pp. 117-118). Directriz genérica que impõe, desde logo, e antes do mais, uma caracterização e valoração da intencionalidade que subjaz a essa disciplina, como unidade normativa. Dela ressalta, como característica fundamental, um crescendo de intensidade tuteladora, consoante o maior tempo de gravidez, compondo o que poderemos designar por um regime trifásico: num período inicial, a decisão é deixada à responsabilidade última da mulher, em fases subsequentes a interrupção fica dependente de certas indicações, sendo proibida, em princípio, no último estádio de desenvolvimento do feto.

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