TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
168 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Esta tutela progressiva, utilizando como critério o tempo de gestação, representa, em si mesma, uma opção básica determinada por um intuito de harmonização dos bens em colisão. Ela procura repercutir, no plano da valoração ético-jurídica, a mutabilidade dos dados biológicos que conformam a vida ainda não nascida e o significado que ela assume para os termos da peculiar relação – sem paralelo em qualquer outro conflito de bens jusfundamentais – que se estabelece entre o nascituro e a gestante. Na esteira do Bundesverfassungsgericht , na sua decisão de 28 de Maio de 1993, é como “dualidade na unidade” que melhor se pode caracterizar essa relação ( BVerfGE 88, pp. 203 a 253). Mas, como bem salientam os juízes Mahrenholz e Sommer, na sua declaração de voto ( BVerfGE 88, pp. 338 a 342), tal relação não se mantém estática em todo o período de gravidez: “enquanto que nas primeiras semanas a mulher e o nascituro (…) se apresentam ainda completamente como uma unidade, com o crescimento do embrião a ‘dualidade’ evidencia-se mais fortemente. Este processo de desenvolvimento tem também significado jurídico. No entender do Tribunal Constitucional, em período algum do processo natural de gestação, incluindo a sua fase inicial, se justifica que a solução do conflito se possa dar pela prevalência absoluta do interesse da mulher, com o sacrifício total do bem da vida, o que levaria à admissão de um livre e incondicionado direito a abortar. Mas já se justifica que as alterações biológicas que se dão no processo de gestação, significativas do ponto de vista da progressiva formação do suporte físico da personalidade humana, tenham incidência na valoração jurídico-constitucional das soluções de conciliação dos bens em conflito. É constitucionalmente viável que a ponderação de interesses em causa, na busca dessas soluções, leve em conta o tempo de gestação, precisa- mente porque, com o desenrolar do processo ontogenético, a realidade existencial de um dos bens a tutelar assume contornos gradativamente distintos, assim se alterando também, correspondentemente, o ponto de equilíbrio a estabelecer com as exigências decorrentes do estatuto jusfundamental da mulher grávida. Como acentua a já mencionada declaração de voto: “(…) o conteúdo da posição jusfundamental da mulher e o papel do Estado no exercício do seu dever de protecção devem ser avaliados de modo diferente na fase inicial e em estádio mais adiantado [da gestação]” ( ob. loc. cit .). Precisamente porque a sua ideia fundante corresponde a um “sentimento jurídico” generalizadamente difundido, o atendimento do tempo de gestação é um dado comum a todas as legislações não radicalmente proibicionistas. Em todas elas, na variabilidade das suas soluções, com maior ou menor amplitude de con- sagração de previsões de impunibilidade, o factor tempo é considerado. O próprio “modelo das indicações” não o dispensa. 11.4.5. Mas a solução questionada não contende apenas com a medida da protecção do embrião e do feto, na fase inicial da gestação. Ela lança a dúvida quanto à própria existência de protecção e, se admitirmos que ela está consagrada, quanto ao seu modo de efectivação. O que se interroga, em primeira linha, é se a equilibrada harmonização dos valores em conflito, que passa – o que se admite – pelo estabelecimento de regimes diferenciados, consoante o tempo de maturação do embrião e do feto, não é posta em crise quando, dentro de um período inicial, se reconhece autonomia decisória à mulher, facultando-lhe a tomada de uma ”decisão livre, consciente e responsável” [alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, na formulação do artigo 1.º da Lei n.º 16/2007]. Dando como líquido que a valoração da vida-uterina e a protecção do feto “será quase sempre prevalecente nas últimas semanas” (Acórdão n.º 288/98), e que, em fases precedentes, se justifica, em certas circunstâncias, a solução contrária, fica em aberto saber se, e em que condições, o aten dimento da posição constitucional da mulher pode ir ao ponto de, nas primeiras semanas, atribuir relevo decisivo à manifestação da sua vontade em interromper a gravidez. Esta enunciação mais precisa da questão de constitucionalidade a solucionar remete-nos directamente, após o enquadramento efectuado, para a apreciação do sistema instituído pela Lei n.º 16/2007. Duas notas prévias devem aqui ser explicitadas. A primeira para evidenciar, em reforço do que já foi dito, que cumpre apreciar apenas se o regime de direito ordinário, globalmente considerado, traduz ou não a realização eficiente do mínimo de protecção
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