TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010

172 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL quando ela seja política e criminalmente inoperante, ou mesmo nociva.” − Problemas fundamentais de direito penal , 2.ª edição, Lisboa, 1993, pp. 57-58. A utilização do direito penal só se legitima quando seja de lhe atribuir (como requisito mínimo) eficiên- cia, e quando a eficiência que se lhe imputa, sendo incontroversamente superior à de qualquer outro meio alternativo, é também a única capaz de atingir o mínimo de protecção constitucionalmente imposto. Só nestas condições resultam satisfeitos os critérios da idoneidade e da necessidade, só assim se justifica a con- versão do imperativo constitucional de tutela, ainda indeterminado quanto aos meios, num preciso dever de estabelecimento de sanções penais. Ora, a tal respeito, a interrupção voluntária da gravidez põe em cheque convicções adquiridas noutros campos. Na verdade, essa acção faculta um bom exemplo de uma das situações em que não pode partir-se da ideia da eficiência da intervenção do direito penal, como se de uma apriorística evidência se tratasse. A sin- gularidade da relação conflitual e da fonte do perigo de lesão explicam, em boa medida, essa falência dos instrumentos penais. Dados os termos da tipificação legal, a questão só se põe quando a interrupção é realizada com o consen- timento da própria grávida. Nessa configuração, em que se esfuma a alteridade entre autor e vítima, a ameaça de sanção penal para resolver um conflito “interior”, de carácter existencial, na esfera pessoal de alguém que simultaneamente provoca e sofre a lesão, não tem a eficiência que, em geral, lhe cabe. Os números aí estão, para o comprovar eloquentemente. O regime de punibilidade, aplicável em todas as fases da gestação, não evitou a prática, em larga escala, do aborto, frequentemente em condições aten- tatórias da dignidade e de grave risco para a saúde física e psíquica (ou até para a vida) da mulher – bens, estes, objecto de direitos fundamentais, radicados na esfera da grávida, também eles, a fortiori , cobertos por um dever estadual de protecção. Acresce que a eficiência da criminalização, neste como em qualquer outro domínio, depende, em pri- meira linha, do efectivo exercício dos poderes punitivos do Estado. No que agora nos ocupa, só a efectiva perseguição e pronúncia, em número significativo, dos agentes do crime de interrupção voluntária da gravi- dez constituiria, potencialmente, um factor de contenção da sua prática. Ora, o que constatamos, ano após ano, é a extrema raridade das condenações com esta causa. Segundo dados constantes do “Relatório e Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias”, intitulado Sobre interrupção voluntária de gravidez , elaborado, em Fevereiro de 1997, pelo Deputado José de Magalhães, foram registados, nos sete anos anteriores, nos serviços do Ministério Público, a nível nacional, 97 processos relativos à possível ocorrência de crimes de aborto. Quanto a condenações, foram proferidas, entre 1985 e 1995, em número que oscilou entre duas (em 1986 e 1988) e treze (em 1992), perfazendo, nesses onze anos, um total de 66. Constata-se, assim, que, em flagrante contraste com a sua grande difusão, o crime de interrupção voluntária da gravidez muito poucas vezes atravessa os umbrais das portas dos nossos tribunais. E quando, excepcionalmente, tal acontece, a reacção social é mais de mal- estar do que de aplauso – a evidenciar, conjuntamente com a inércia das instâncias sociais de controlo, que o alto significado do bem afectado e a gravidade da lesão não são acompanhados, como seria normal (não fora o particular contexto conflitual do acto lesivo), por um sentimento de radical intolerabilidade. Isto mostra que, do ponto de vista comunitário, tal comportamento não é valorado como um crime. Nem se detecta qualquer movimento social significativo no sentido da alteração deste estado de coisas, pugnando pelas efectivas perseguição e punição do maior número de infractoras. A observação da realidade – e a ponderação da carência de pena, em função, como deve ser, da sua eficiência relativa, não pode passar à margem de uma diagnose da factualidade empírica da vivência social – não é, pois, de molde a conferir, com um mínimo de consistência, validade a um discurso de criminalização da interrupção em todo o arco temporal da gravidez, incluindo na sua fase mais precoce. Não é de esperar que a penalização criminal crie um “ambiente” de decisão favorável à prossecução da gravidez.

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