TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010

174 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL confirma-o) que essa especificidade rouba aos instrumentos penais a idoneidade e a eficiência de que geral- mente dão mostras, pelo que, levando a sério os critérios da adequação e da necessidade, optou-se por dar preferência, no período inicial da gravidez, a uma solução que, com pleno respeito da sua liberdade decisória, faz apelo ao sentido de responsabilidade da grávida. 11.4.10. O alcance tutelador deste regime não pode ser objecto de desvalorização total e imediata, in radice . Não se pode partir do princípio de que o propósito de não prosseguir com a gravidez se filia em puras razões hedonísticas, impulsionadoras de decisões apenas ditadas pelo interesse egoísta da própria grávida. Dados fiáveis da análise sociológica e, até, o testemunho de profissionais envolvidos nos processos de interrupção – cfr., para o caso alemão, BVerfGE 88, p. 349 – apontam, todavia, noutra direcção. Eles evidenciam que a decisão de abortar é tipicamente tomada, não obstante a angústia que provoca, por genuína convicção de que se trata da decisão certa, no que pesa o sentido de responsabilidade perante a vida futura do nascituro e perante outros sujeitos, a quem se quer evitar dor ou causar prejuízo. Razões de responsabilidade moral, tal como a grávida as compreende e sente, colocam-se frequentemente de ambos os lados da opção a tomar. Como diz Robin West, “(…) a decisão de abortar é quase invariavelmente tomada dentro de uma rede de responsabilidades e obrigações entrecruzadas, concorrentes e muitas vezes irreconciliáveis” (apud Ronald Dworkin, Life’s Dominion. An Argument about Abortion and Euthanasia , London, 1993, p. 58). Num campo de valoração pouco propício a concepções absolutizantes de imperativos reguladores, em que não se divisam soluções ideais, de eficiência garantida, mas em que, pelo menos, é certo que a punição criminal não reduz significativamente o número de abortos e é contraproducente em relação a bens consti- tucionalmente protegidos (a saúde da mulher, designadamente), não se afigura injustificado confiar na capa- cidade da grávida para tomar uma decisão responsável. Um direito soft , de base prestativa, mais promocional do que repressivo, pode criar condições, na mente e na vontade da grávida, para que, naqueles casos em que a dúvida interior se prolonga, subsistindo mesmo após o início do processo de externalização da intenção abortiva, a decisão venha a pender para o lado da vida. E só esses casos importam, pois todos os outros são, realisticamente, casos “perdidos”. 11.4.11. Não sendo de rejeitar, à partida, por razões de eficiência, esta solução abona-se em razões de princípio, na consideração da personalidade e da dignidade da mulher. Há que atentar em que a carga axiológica do princípio da dignidade humana não está toda do lado da vida intra-uterina. Ela investe tam- bém a posição jurídico-constitucional da mulher, sendo que, nesta esfera, não está apenas em causa o valor objectivo da vida humana, mas a sua valia pessoal para alguém, uma pessoa, um sujeito já reconhecido como titular de direitos fundamentais. É certo que a interrupção voluntária da gravidez representa a denegação pura e simples da expressão mais essencial desse valor, quando reportado à fase intra-uterina. Em contrapartida, a hipótese contrária, a futura concretização de um nascimento com vida, preserva, em princípio, a continuação da existência da grávida, tendo impacto, por forte que seja, apenas na condução de uma vida com sentido, na impossibili- tação (ou no agravamento da impossibilitação) das condições que, para a própria, em autodeterminação (e também, eventualmente, para outros sujeitos directa ou indirectamente envolvidos), são tidas como dando valor substancial à sua vida. Nesta medida, pode dizer-se que é maior a gravidade da lesão causada pela interrupção voluntária da gravidez. Mas essa conclusão apenas justifica a atribuição de maior peso ao interesse na sua prossecução, na ponderação a estabelecer com o interesse contrário. Já não legitima a renúncia à busca de soluções mini- mamente compromissórias, em desconsideração total do pólo valorativo formado pelo reconhecimento do valor constitucional da posição da mulher. Tanto mais que, para esta, o respeito pela vida intra-uterina não se traduz apenas, como para terceiros, num dever de omitir qualquer conduta que a ofenda, num deixar correr, sem interferências lesivas, o processo natural de gestação, vindo também a implicar, após o nascimento, na vinculação, por largos anos, a deveres permanentes de manutenção e cuidado para com um outro, os quais

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