TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
181 ACÓRDÃO N.º 75/10 Assim como – agora no plano da preservação da dignidade da mulher grávida – a crença no seu sentido de responsabilidade e na sua predisposição a sensibilizar-se pelas razões contrárias à interrupção conjugar-se- -iam mal com um tratamento que a menorizasse enquanto sujeito da decisão, com uma posição de orienta- ção de cunho paternalista e tutelar. As exigências decorrentes da tutela da dignidade da mulher afirmam-se também no modo como se deve processar a consulta que lhe é imposta. 11.4.17. É de reconhecer que ao legislador se deparou um estreitíssimo canal de navegação, entre as razões e os princípios que nortearam a decisão de excluir, em certos termos, a punibilidade da interrupção voluntária da gravidez, na sua fase inicial, e a margem oposta desenhada pela proibição do défice de tutela. E há que reconhecer, de igual forma, que ele não poderia ter ido muito mais além, na promoção de decisões de prossecução da gravidez, sem exposição séria ao risco de resultados perversos, comprometedores dos objectivos que justificam aquela opção. Não se afigura desrazoável, em tal contexto de política legislativa, a auto-contenção de que ele deu mostras. Auto-contenção que, de modo algum, pode ser confundida com uma posição de neutralidade ou de indi ferença perante a decisão que a grávida venha a tomar. Toda a preocupação revelada na Lei n.º 16/2007, de estruturação de serviços e de imposição de procedimentos na sua utilização, não tem um significado puramente técnico-organizativo, só se compreendendo como expressão de empenho na tutela, para além da saúde da mulher,da vida pré-natal. E não é a omissão de uma expressa vinculação formal dos serviços à consecução dessa finalidade que pode servir de razão bastante para negar a presença dessa intencionalidade de tutela, quando só ela dá objectivamente sentido ao conteúdo de muitas das normas de organização e de procedimento constantes daquele diploma. A eficiência protectora, nos limites em que, nesta fase, ela é expectável, é mais resultado da acção consciencializadora e objectivamente incentivadora de certos trâmites, da dependência procedimental em que, em relação a eles, é colocada a realização da intervenção, do que de processos comunicacionais ostensiva- mente orientadores que, sem a participação dialógica da grávida (nunca garantida e, porventura, prejudicada por uma opção desse tipo), facilmente se transmutam em formalidades ritualisticamente processadas. Não se pode, pois, ver na falta de indicação expressa de uma finalidade dissuasora da interrupção da gravidez o preciso défice de regulação que faz com que o regime questionado não atinja o grau de compro- metimento com o valor da vida exigível para a satisfação do mínimo de tutela. Tal exigência – só constante, aliás, no quadro europeu, da legislação germânica, com base num entendimento, divergente daquele que é perfilhado por este Tribunal, de que o bem da vida intra-uterina tem um referente pessoal, e porventura explicável por circunstâncias específicas desse ordenamento, ligadas ao processo de reunificação – tal exigên- cia, dizíamos, não representa um penhor seguro de uma maior intensidade de tutela, capaz de traçar, com nitidez, uma linha divisória entre o campo das soluções constitucionalmente conformes e o das que não o são. Está por demonstrar que ela trouxesse um acréscimo de eficiência, não sendo até de excluir o resultado contrário, por uma retracção defensiva da grávida. E só perante um índice manifesto, incontroversamente significante da necessidade, para cumprimento do imperativo de protecção, de uma enunciação expressa da finalidade dissuasora haveria fundamento para um juízo de inconstitucionalidade. Pois, na verdade, cumpre reconhecer que o julgador não dispõe de um instrumento de mensuração exacta do grau de protecção exigível para o cumprimento, pelo Estado, do correspondente dever. Nem se lhe pode exigir a identificação de um preciso e fixo ponto arquimédico, abaixo do qual o veredicto do incumpri- mento tenha que cair, inexorável. Quando é a observância do imperativo de tutela que está em questão, mais ainda do que em qualquer outra dimensão da constitucionalidade, e em correlação com uma maior liberdade de conformação legislativa (dada a estrutura dos deveres activos de intervenção), a instância de controlo tem que lidar com critérios de evidência, só se justificando uma pronúncia de inconstitucionalidade em caso de manifesto erro de avaliação do legislador. Esse erro, no entender do Tribunal, não foi cometido, quanto às soluções contestadas, não podendo afir- mar-se que as opções legislativas ficaram aquém do que seria exigível para justificar a exclusão da punibilidade.
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