TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
186 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Mas o legislador mostrou-se perfeitamente consciente disso mesmo, ao impor que a grávida seja infor- mada, no decurso da consulta obrigatória, das consequências para a sua saúde (tanto física como psíquica, evidentemente) da efectivação do seu desígnio. E essa informação, mesmo num quadro decisório de auto- -responsabilidade, pode ter, nalguns casos, alguma eficácia desincentivadora, por instigação dos mecanismos de autotutela. E ainda que a grávida decida levar o seu propósito avante (o que, já se admitiu, acontecerá na grande maioria dos casos, mas isso qualquer que seja o sistema disciplinador), a preocupação de tutela da sua saúde está presente ao impor-se que a interrupção seja efectuada por médico, ou sob sua direcção, em estabeleci- mento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, e ao impor-se a estes estabelecimentos a adopção de medidas capazes de garantirem uma boa prestação deste serviço, também em termos médicos (cfr. a Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho). O erro da arguição é o de pressupor que o impedimento ou dificultação de realizar a interrupção volun tária da gravidez em condições de impunibilidade se traduz automaticamente no decréscimo do número desses actos e, logo, numa menor possibilidade de concretização do risco a eles associado. Ora, já vimos que não é assim. Certo é antes que esse regime teria o efeito, como teve no passado, de potenciar o número de abortos praticados em condições completamente inadequadas e, esses, de risco muito mais grave para a saúde da mulher – risco frequentemente concretizado, como a prática hospitalar documenta. E os primeiros dados disponíveis parecem confirmar o efeito salutar, a este nível, da Lei n.º 16/2007, pois, no seu primeiro ano de vigência, terão diminuído significativamente as infecções e a perfuração de órgãos associadas ao aborto clandestino. Quanto às medidas instrumentais de uma plena realização do direito à protecção da saúde, enunciadas na alínea b) do n.º 2 do artigo 64.º da CRP, é evidente que políticas sociais dirigidas à criação de condições de vida e de trabalho dignas e de apoio solidário aos que delas estão carentes fornecem uma envolvente favo rável à disponibilidade para aceitação responsável da maternidade, sendo também elas um relevante factor, ainda que genérico e mais longínquo, de contenção das práticas abortivas. Como já alguém disse, “a melhor protecção da vida pré-natal é a da vida existente”. Mas, o que nem o mais denodado esforço interpretativo consegue alcançar é o porquê de os agravos sobre a condição da mulher ocasionados pela falta dessas medidas, tão pictoricamente descritos no pedido, deverem ter por corolário… a inflicção de um novo mal – a punição penal por uma interrupção voluntária da gravidez explicável, em muitos casos, por aquelas circunstâncias. É de concluir, pois, que a admissão da realização da interrupção voluntária da gravidez, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez, nas condições fixadas na Lei n.º 16/2007, não desprotege a saúde física e psíquica da mulher. 11.7. Violação do direito à liberdade e do princípio da proporcionalidade O regime consagrado no mesmo artigo 2.º e no artigo 142.º, n.º 4, alínea b) , do Código Penal é também apontado, na motivação, como conflituando com os “direitos constitucionais à liberdade e proporcionali- dade”, tornando-se, deste ponto de vista, sindicável perante o disposto nos artigos 25.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, da CRP. A relacionação destas normas com aqueles valores constitucionais alegadamente violados desperta algumaperplexidade, pois não se descortina que “os direitos constitucionais à liberdade e proporcionalidade” possam caber nos respectivos âmbitos de protecção. Em relação à norma do artigo 27.º, n.º 1, a sua invocação parece assentar num equívoco, pois o bem protegido em tal preceito, como se reconhece consensualmente e os n. os 2 e 3 deixam claro, é o da liberdade física. Ora, o que aqui pode estar em causa é apenas a liberdade real de decisão, quanto à realização ou não do acto abortivo, por défice de informação quanto a todos os elementos relevantes para uma escolha consciente.
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