TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
188 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL O regime do consentimento para a realização da interrupção da gravidez no âmbito do funcionamento da fattispecie contemplada na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal dispensa, assim, o do pro- genitor, em tal exclusão residindo o vício de inconstitucionalidade apontado pelos requerentes. A apreciação da viabilidade constitucional deste regime pressupõe a prévia caracterização da configura- ção em que, neste quadro, o problema pode juridicamente suscitar-se. De facto, só nos casos em que a identidade do progenitor for susceptível de ser estabelecida pela ordem jurídica, de forma legítima, é que a questão poderá verdadeiramente colocar-se. Se o não puder ser, não chega a suscitar-se um qualquer problema jurídico porque, em termos puramente jurídicos, um pai desconhecido é o mesmo que um pai inexistente, pelo que a sua vontade será neste caso irre levante (Pedro Pais de Vasconcelos, “A posição jurídica do pai na interrupção voluntária da gravidez”, in Estudos em honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão , I, Coimbra, 2008, pp. 139 e segs., pp. 152-153). Ora, podendo partir-se com segurança do postulado segundo o qual não constituiria forma legítima de estabelecimento da identidade do progenitor qualquer uma que assentasse na previsão de uma investigação das circunstâncias da concepção ou numa indagação a desenvolver junto da própria grávida – tratar-se-ia sempre de uma intolerável violação do direito à reserva da intimidade que lhe é assegurado pelo artigo 26.º da Constituição –, o problema da dispensa do consentimento do progenitor para a realização da interrupção voluntária da gravidez fica juridicamente limitado ao âmbito do funcionamento operativo da presunção de paternidade decorrente do casamento, consagrada no artigo 1826.º do Código Civil. Apenas nestes casos, a ordem jurídica estará em condições para, sem o recurso à colaboração da gestante, estabelecer a identidade do progenitor do nascituro comum e, em tal contexto, equacionar a possibilidade de, em oposição ao critério legal impugnado, fazer depender também do assentimento daquele a realização da interrupção da gravidez por opção da grávida. Nos termos preceituados no artigo 1826.º do Código Civil, presume-se que o filho nascido ou conce- bido na constância do matrimónio da mãe tem como pai o marido da mãe. Tal presunção, não sendo inderrogável, cessa nos casos previstos nos artigos 1829.º e 1832.º do mesmo Código. Trata-se aqui dos casos em que a lei não impõe a presunção de paternidade ao marido da mãe, embora a concepção do filho se tenha verificado durante a constância formal do matrimónio. Segundo o artigo 1829.º, a presunção de paternidade cessa se o nascimento do filho ocorrer passados trezentos dias depois de finda a coabitação dos cônjuges, considerando-se esta para um tal efeito terminada na data da primeira conferência, tratando-se de divórcio ou de separação por mútuo consentimento; na data da citação do réu para a acção de divórcio ou separação litigiosa, ou na data que a sentença fixar como a da cessação da coabitação; na data em que deixou de haver notícias do marido, conforme decisão proferida em acção de nomeação de curador provisório, justificação de ausência ou declaração de morte presumida. A presunção de paternidade cessa ainda, nos termos do artigo 1832.º, nos casos em que a mulher casada fizer a declaração do nascimento com a indicação de que o filho não é do marido e se for averbada ao registo declaração de que, na ocasião do nascimento, o filho não beneficiou de posse de estado, nos termos do n.º 2 do artigo 1831.º, relativamente a ambos os cônjuges. Como se vê, qualquer uma das causas legalmente habilitadas a fazer cessar a presunção de paternidade decorrente do casamento supõe precisamente o nascimento, razão pela qual nenhuma delas será passível de verificar-se no momento temporal a que se reporta a prestação do consentimento para a realização da inter- rupção da gravidez. Deste ponto de vista, pode dizer-se que a presunção de paternidade será, para um tal efeito, inderrogável. Apesar de ser assim, não está, todavia, excluída a possibilidade de a grávida declarar espontaneamente que o progenitor biológico não é o seu cônjuge. Embora não possa fazer cessar a presunção da paternidade nos termos previstos no artigo 1832.º, do Código Civil, tal declaração, a ocorrer, não deixará de afectar o sentido, também jurídico, do problema da dispensa do consentimento do progenitor para a realização da interrupção voluntária da gravidez.
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