TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
205 ACÓRDÃO N.º 75/10 de saúde são aqui indissociáveis da praticabilidade do regime de despenalização, não podendo, por isso, ser encaradas e tratadas autonomamente, sem ter em conta o modo como interferem, quanto à sua efectivação e conformação, na possibilidade de transposição desse regime para a realidade social. A disponibilização dessas prestações requer medidas organizatórias, medidas de preparação logística, de coordenação e emprego de recursos humanos e técnicos e de fixação de regras e procedimentos funcional- mente disciplinadores. Também quanto a elas não gozam os estabelecimentos que se integram nos serviços regionais de saúde de inteira liberdade, pois devem organizar-se por forma a que a interrupção voluntária da gravidez “se veri- fique nas condições e nos prazos legalmente previstos” (n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 16/2007). O que eles não estão é sujeitos às directrizes emanadas, a este propósito, pelos órgãos dirigentes do Ser- viço Nacional de Saúde, pois a este não pertencem. Estando finalisticamente vinculados a um resultado – o de garantir os procedimentos e condições apropriados à realização, sem punição, da interrupção voluntária da gravidez, no quadro da hipótese aberta por uma norma de direito penal, a alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do respectivo Código – dispõem, todavia, da autonomia organizativa compatível com a sua consecução. E uma certa margem de autonomia subsiste, não obstante aquela vinculação, a nível dos concretos modosorganizativos e operativos, de carácter mais “regulamentar”. No exercício dessa autonomia, poderão os serviços regionais fazer reflectir as características específicas da região, no que diz respeito, v. g ., à realidade social, extensão do território, unidades e pessoal disponíveis, ou ao nível estimado da procura. A lei da República deixou à autonomia regional aquilo que constitucionalmente podia (e devia) deixar, a saber, a autonomia organizativa quanto aos aspectos não predeterminados pela observância das condições legais. Exactamente os aspectos regulamentares atinentes à fixação concreta das formas modais de cumprir o programa normativo de despenalização (necessariamente de âmbito nacional), coenvolvendo opções em que nenhum dos termos contenda com a efectividade de uma oferta prestativa que permita o preenchimento dos pressupostos legais da aplicação daquele regime. Só esses aspectos, dentro de uma área de normação bifrontal, em que determinada organização dos serviços de saúde serve especificamente à possibilitação da interrupção voluntária da gravidez sem punição, não caem na órbita do direito penal. Outra interpretação roubaria aplicabilidade, no território das regiões, à alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, com ofensa da unidade do Estado, que o artigo 165.º, n.º 1, alínea c) , da CRP também quis, neste domínio, assegurar, na medida em que afastou a competência legislativa regional. 12.7. A leitura que acabámos de fazer depara, prima facie , com um obstáculo de monta: o disposto no artigo 8.º da Lei n.º 16/2007. Esta norma remete para o Governo a regulamentação da lei, fixando, para o efeito, o prazo máximo de 60 dias. E, efectivamente, essa regulamentação foi editada, dando corpo à Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho. Esta portaria, para além de reproduzir pontos do regime legal, complementa-o com a disciplina das me- didas organizatórias e procedimentais tidas por apropriadas à implementação do disposto naquele diploma. Da norma do artigo 8.º e da falta de idêntico comando endereçado à entidade regional de saúde compe- tente poder-se-ia concluir que a Lei n.º 16/2007 reserva para o Governo, em exclusivo, o poder regulamentar, nesta matéria. Ora, como é no âmbito do exercício desse poder – ainda que com os limites de ele ter por objecto um regulamento de execução –, que podem ser normativamente moldados os aspectos organizativos, ficaria irremediavelmente prejudicada, a ser assim, uma intervenção conformadora, neste plano, dos poderes regionais. O que consubstanciaria uma lesão da autonomia legislativa e administrativa das regiões autónomas. Mas a norma do artigo 8.º não deve ser lida como importando uma reserva de poder regulamentar gover- namental. Ela contém uma imposição de regulamentação ao Governo, necessária para assegurar a aplicabilidade da Lei n.º 16/2007. Mas nada permite concluir, numa inferência a contrario , que ela visa também eliminar a faculdadede intervenção da Assembleia Legislativa das regiões, ao abrigo da sua competência própria. A previsão específica de uma faculdade de regulamentação, neste domínio, não era necessária, garantida que ela
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