TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
211 ACÓRDÃO N.º 75/10 O discurso argumentativo do Acórdão cria a aparência de que o estado actual da questão corresponde a um simples desenvolvimento da axiologia jusfundamental, tal como ela foi sendo exprimida logo desde o Acórdão n.º 25/84, e de que não houve sobre ela um largo e profundo debate constitucional. 3 – Sobre o sentido do artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa continuo a pensar nos termos constantes da declaração de voto aposta no Acórdão n.º 617/06, que se pronunciou sobre a cons titucionalidade e legalidade da realização do Referendo efectuado no dia 11 de Fevereiro de 2007. Escrevi, então, nessa sede: «5.1 – […] Não irei expor longamente os fundamentos jurídico-constitucionais com base nos quais se considera que a vida humana uterina tem consagração e protecção constitucionais nos termos do artigo 24.º, n.º 1, da nossa Lei Fundamental. E não o farei, exactamente, porque, quer o Acórdão n.º 288/98, ao qual constan- temente se arrimou, aí de modo inequívoco, quer o presente Acórdão, não deixam de pressupor, ainda que, neste, de forma não tão impressiva, que a vida uterina tem protecção constitucional, correspondendo a um direito ou garantia fundamentais. Depois, porque acompanho, no essencial, os votos apostos àquele Acórdão n.º 288/98 pelos senhores conselheiros que votaram vencido e que aqui se recuperam. Nesse ponto – e com naturais reflexos, como não poderá deixar de ser quanto à solução desta questão – a nossa discordância com o Acórdão reside, essencialmente, na intensidade de protecção jurídico-cons titucional que se entende derivar de tal preceito, quer no que importa à dúvida, nele concitada, sobre a titularização/subjectivação do direito à vida humana no artigo 24.º, n.º 1, da CRP, quer na resposta a dar quando esse direito ou garantia fundamentais entrem em conflito com outros direitos da mulher, mormente, a agora designada “liberdade de manter um projecto de vida” “como expressão do livre desenvolvimento da personalidade». Não obstante isso – e com referência à metodologia seguida – não é de passar em branco que o Acórdão, ansiando, porventura, acentuar os argumentos que, na sua óptica, abonarão a favor da não inconstitucio- nalidade de uma solução jurídica perspectivada na senda de uma resposta afirmativa ao referendo, discorre, essencialmente, sobre um diálogo de ponderação entre os direitos fundamentais, susceptíveis de entrarem em conflito, a partir de uma “configuração mais radical” do âmbito da protecção da vida humana, como se a solução passasse, no caso concreto, por essa linha de protecção, esbatendo a existência, no direito vigente, de causas de desculpabilização e de justificação que dão expressão, num plano autónomo e exterior, às exigên- cias demandadas, no caso, por um juízo ponderativo de concordância prática entre os direitos tidos como estando em conflito. Ao contrário do suposto como elemento de argumentação, não se afirma, nem se viu alguma vez defen dido na ciência jurídica, que, tendo por referência a vida pré-natal e pós-natal, “tenha de existir uma protecção penal idêntica em todas as fases da vida”, como postulado ou decorrência da inviolabilidade da vida humana ou que haja “uma argumentação a favor da inconstitucionalidade [da resposta afirmativa ao referendo] que nivele a vida em todos os seus estádios”. Tal princípio constitucional não demanda que a protecção penal da vida humana tenha de ser idêntica, em intensidade, em todo o continuum da vida e em todas as circunstâncias de facto. O que o princípio da inviolabilidade da vida humana reclama é que a violação do direito à vida (uterina e pós-uterina) tenha, sempre, protecção penal, valendo, dentro dos diferentes níveis dessa protecção, os princípios gerais de direito criminal, de matriz, igualmente, constitucional, da justificação do facto, da culpa e do estado de necessidade. Assim, não está o legislador ordinário impedido, em geral, de conformar diferentes níveis de protecção criminal, expressos, maxime , no recorte do facto ilícito típico e da pena, para os diferentes momentos e circunstâncias do continuum em que se desenvolve a vida humana, diferenciando, dentro dele, a vida intra- -uterina da pós-uterina. O que a Constituição reclama é que, salvo a existência de causas de desculpabilização ou de justificação, a vida seja penalmente protegida.
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