TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
212 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Em segundo lugar, o argumento de que não existe “uma linha de inflexível necessidade lógica”, como afirma o Acórdão, entre a definição da inviolabilidade da vida humana e a intervenção penal, “nomeada- mente pela interferência de perspectivas de justificação, de desculpa ou ainda de afastamento da respon- sabilidade” devido “à necessidade da pena”, assenta sobre uma patente incongruência lógica, dado que as dimensões alegadas para afastar a intervenção penal são já institutos que pressupõem, necessariamente, a existência dessa protecção penal. Em terceiro lugar, a convocação do entendimento seguido no referido Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, segundo o qual na mente dos constituintes do artigo 24.º, n.º 1, da CRP não caberia a protecção da vida uterina só teria sentido para quem – posição que parece não ser, de modo assumido, a do acórdão e não é, seguramente, a do Acórdão n.º 288/98, em que constantemente se abona, nem dos votos de vencido a eles apostos – seguisse uma tese radical de exclusão do âmbito de pro- tecção conferida por tal artigo da vida intra-uterina. 5.2 – Sendo, assim, admitido como está, pelo Acórdão e por todos os vencidos, que a vida humana intra-uterina goza de protecção constitucional, o que importa saber, é se, a operação de concordância prática dos direitos e valores constitucionalmente relevantes, presentes no caso, que o acórdão levou a cabo se apre- senta efectuada com respeito pelo princípio constitucional que emerge do artigo 18.º, n. os 2 e 3, da CRP. Por nós, temos por seguro que não. E firmamos esse juízo, essencialmente, nas seguintes considerações. Desde logo, porque não deixa de impressionar-nos que o Acórdão perspective a tutela de inviolabilidade da vida humana, estabelecida no artigo 24.º, n.º 1, da CRP, desligada do ser que constitua o seu titular, acabando por reduzir, subliminarmente, segundo uma óptica radical que tanto critica, o seu âmbito de pro- tecção apenas aos fetos com mais de 10 semanas de gestação e às pessoas nascidas. Ora, não vemos, como melhor se verá adiante, que tenha sentido falar-se de inviolabilidade da vida huma na sem ser por referência ao ser que dela seja titular, seja este ser já uma pessoa ou apenas um ser a caminho de ser pessoa (cfr. Laura Palazzani, Il concetto di persona tra bioetica e diritto , Torino, 1996; A. M. Almeida Costa, “Abortamento provocado”, in Bioética , AA. VV. Coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia e Walter Osswald, Lisboa, 1996, pp. 201 e segs., e João Carlos Loureiro, “Estatuto do Embrião”, in Novos Desafios à Bioética , AA. VV., coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia, Walter Osswald e Michel Renaud, Porto 2001, pp. 110 e segs.). Do mesmo passo, não se compreende que se erija a essencial fundamento da tutela constitucional devida ao embrião/feto o princípio constitucional da dignidade humana, quando este princípio supõe, pre- cisamente, a existência de um ser dotado de vida humana e o preceito do artigo 24.º, n.º 1, da CRP não só não aponta em qualquer sentido restritivo, como corresponderia a uma solução contrária ao princípio da “máxima efectividade e expansividade” dos direitos e garantias fundamentais, constantemente, invocado para justificar a inclusão nos direitos fundamentais de realidades que suscitam alguma dúvida. Por outro lado, o Acórdão não realizou qualquer juízo de concordância prática entre os dois valores ou direitos constitucionais, tidos como estando em conflito: o direito do ser, “embrião/feto humanos”, a nascer e a “liberdade da mulher a manter um projecto de vida, como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade”. E não efectuou, porque, pura e simplesmente, para fazer prevalecer este último, rejeita a titu- larização, no âmbito do artigo 24.º, n.º 1, da CRP (subjectivação constitucional), do direito à vida humana e, decorrentemente, do conteúdo essencial do direito do feto a nascer, admitindo a possibilidade de, sem censura penal, lhe tirar a vida humana. De qualquer modo, pressuposta, como se defende na doutrina e jurisprudência constitucionais, a inexis tência de hierarquia entre direitos constitucionais, precisamente com base na identidade da sua fonte, nunca a colisão de direitos constitucionais poderá ser resolvida, pelo legislador ordinário, com base num critério normativo de prevalência da liberdade da mulher a manter um projecto de vida à custa da morte do feto, titular constitucional de vida humana e da respectiva dignidade. A operação de concordância prática entre direitos constitucionais, posicionados como estando em con- flito, demanda a realização de um juízo de ponderação (legislativa ou judicial) que dê satisfação ao princípio constitucional da máxima efectividade de protecção dos direitos e garantias fundamentais.
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