TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010

215 ACÓRDÃO N.º 75/10 constitucionalidade, caberia ao próprio legislador constitucional resolvê-la e não ao legislador ordinário, mormente no que toca ao conteúdo essencial do direito, que é aquele que é tocado pelo aborto. E não se esgrima, contra esta posição, como está pressuposto pelo Acórdão, para justificar a existência de um juízo ponderativo de concordância prática, que só tal operação permite enquadrar constitucionalmente as causas de desculpabilização e de justificação da interrupção voluntária de gravidez existentes na lei em vigor, pois estas, apenas, correspondem a concretizações, relativamente aos concretos direitos constitucionais que estão em causa, de princípios constitucionais autónomos, que valem para todo o direito criminal – as causas de justificação e de desculpabilização. Depois a tese do Acórdão sofre de um verdadeiro ilogismo: é que os direitos cuja existência alega, ape- nas, constituirão direitos para quem tiver a sorte de não ser abortado. A sua eficácia depende da existência de titulares de direito à vida humana que tenham nascido. A vida humana não existe sem um titular e não é possível falar-se de violação, que o preceito constitu- cional proíbe, sem ser relativamente à posição jurídica de quem se encontre investido na titularidade de um direito. De contrário, o que está em causa é, ainda, a definição do conteúdo constitucional desse direito, dos seus contornos, do seu conteúdo essencial, no mínimo. E, a ser assim, tal domínio não cabe nos poderes do legislador ordinário, mas nos do constitucional. Essa é, também, a razão pela qual repudiamos a tese, admitida no Acórdão (pontos 7 a 10), sobre a admissibilidade de uma dúvida interpretativa sobre a solução, em abstracto, no plano da constitucionalidade, de um conflito de valores ou direitos constitucionais, como a que está, em causa, na proposta de referendo, poder ser devolvida ao eleitorado, através de mecanismos como o referendo e não de eleições em que possam ser assumidos poderes constituintes por parte da Assembleia da República. É que o voto expresso neste caso, desde que afirmativo, apenas pode traduzir uma posição de poder político legislativo ordinário, no sentido transportado pela pergunta, ou seja, corporiza, apenas, uma posição de poder legislativo ordinário, não incorporando quaisquer poderes de definição do conteúdo dos direitos e garantias constitucionais, só possível através da concessão/assumpção de poderes constituintes. Resta, por último, apreciar a posição em que se abona o acórdão, segundo a qual não se esgota, no domínio penal, o âmbito de protecção do direito constitucional à vida humana e de que não existe uma imposição constitucional à criminalização. Estamos de acordo quanto à primeira consideração, mas já não podemos acompanhar, de forma alguma, a segunda proposição. E não podemos, porque entendemos que existem direitos constitucionais cuja existência e exercício hão-de, necessariamente, impor a criminalização das atitudes que os violarem, por, na sua defesa, o legislador ordinário dever usar todos os meios constitucionalmente possíveis e entre estes, evidentemente, a sua ultima ratio – o direito criminal. É o caso do direito à vida humana uterina e pós-uterina. Trata-se de um direito que é pressuposto neces­ sário da existência de todos os demais (direito com pretensão de absoluto), de um direito sem cuja existência, em seres concretos, não é concebível qualquer princípio de dignidade da pessoa humana e existência de uma comunidade politicamente organizada em Estado. O direito à vida humana de qualquer titular constitucional que ele seja, nascido ou não nascido, porque a Constituição os não distingue, é um direito fundante do Homem e da sociedade organizada. Na mesma situação se encontra, por exemplo, a protecção do princípio democrático do Estado de direi­ to. Sem protecção do princípio democrático do Estado de direito, por todos os meios constitucionalmente permitidos, este não poderá existir e subsistir. Sendo assim, não poderá o legislador ordinário deixar de utili­ zar na sua protecção a ultima ratio – o direito criminal”. 4 – Para nós, pois, sintetizando na perspectiva do caso concreto, o n.º 1 do artigo 24.º da Constituição protege a vida humana no grau de inviolabilidade por todos os sujeitos, começando pelo Estado. E estando a

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