TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
216 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL dispor, embora em abstracto, sobre a vida humana só pode referir-se à vida humana enquanto valor concreta- mente existente e verificável e não enquanto simples valor constitucional objectivamente afirmado, como dis- corre o Acórdão: onde concretamente existir uma vida humana ela é inviolável. Donde a afirmação da existência de uma vida humana pressupor sempre uma alteridade, seja ela em relação à gestante ou às pessoas já nascidas. A construção do Acórdão no sentido de ver, para efeitos do âmbito de protecção da norma constitucio- nal, o ente existente no seio materno como uma unidade com a gestante durante o período em que é lícito o aborto – o que lhe permite a afirmação de preponderância dos direitos fundamentais da gestante, e não já uma dualidade ontológica e axiológica, é puramente formal, representando uma intelecção formal construí- da ao arrepio da Natureza. A dualidade da vida humana do feto, até ao nascimento com vida, e da gestante, na lógica do Acórdão, corresponderá a uma atribuição do legislador ordinário que só poderá ser travada nos casos de manifesta evidência de violação do princípio da proporcionalidade, a qual seria apenas reconhecível nos adiantados estados de gravidez. Tal compreensão da realidade humana corresponde a colocar, nas mãos do legislador ordinário, o recorte do âmbito material da garantia constitucional da inviolabilidade da vida humana, a poder lesar a vida humana radicada em um concreto ser, permitindo a sua morte. A nosso ver, a Constituição actual não o permite. Assim, enquanto o preceito constitucional não for alterado, entendemos que nunca o “modelo de prazos” da interrupção voluntária da gravidez se pode ter por legitimado. 5 – Consequencialmente, o artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007 é também inconstitucional. Mas, independentemente da relação de dependência desta questão de constitucionalidade relativamente à anterior, verifica-se ainda que este artigo 2.º, n.º 2, é inconstitucional a título autónomo. Na verdade, ele viola directamente a garantia constitucional da inviolabilidade da vida humana (artigo 24.º, n.º 1, da CRP) e – mesmo para quem entenda não se estar perante um caso em que sai ofendido o conteúdo essencial do artigo 24.º, n.º 1, da CRP – o princípio da necessidade e da proporcionalidade das restrições a direitos fundamentais (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), na medida em que, na presença de bens constitucionais não hierarquisados entre si (os direitos fundamentais da gestante e o direito constitucional do feto), o preceito adopta uma estrutura de informação de total alheamento da vida humana, em nada assu mindo uma atitude de defesa da vida humana do feto. 6 – Finalmente, a proibição, pelo legislador ordinário – e é disso que se trata! – de os médicos objectores de consciência poderem participar na consulta prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal ou no acompanhamento das mulheres grávidas a que haja lugar durante o período de reflexão, prevista no artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, é também inconstitucional, por violação desproporcionada do direito fundamental da liberdade de trabalho e de profissão, consagrada no artigo 47.º, e da garantia de liberdade de consciência, reconhecida no artigo 41.º, ambos os preceitos da Constituição, bem como do princípio da igualdade, estabelecido no artigo 13.º da mesma Lei Fundamental. Antes de mais importa notar que não está aqui em causa uma restrição destes direitos fundamentais em relação aos médicos que invoquem a objecção de consciência a que se refere o artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 16/2007, ou seja, aos médicos que declarem o “direito de objecção de consciência relativamente a quais- quer actos respeitantes à interrupção voluntária de gravidez”. A questão põe-se relativamente aos médicos que não declarem o direito de objecção de consciência relativamente à consulta médica de informação. Trata-se de uma consulta médica para a qual têm a mesma habilitação legal tanto os médicos que declarem ser objectores de consciência para o acto abortivo, como aqueles que não façam essa objecção de consciência. A consulta de informação não é uma consulta para a realização do aborto. Daí que a descriminação feita pelo legislador apenas possa fundar-se numa suspeita de que os médicos objectores de consciência para o acto de realização do aborto, para a morte do feto, não tenham capacidade ou competência para cumprir o programa legalmente estabelecido para a consulta de informação.
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