TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
219 ACÓRDÃO N.º 75/10 incompatível com outros princípios ou valores constitucionais que se devam também prosseguir. Uma medida que fique aquém do fáctica e juridicamente possível – isto é, que não confira a mais ampla protecção que seja ainda compatível com outros princípios e valores constitucionais – não é, em princípio, “adequada”, pois não concretiza o mandato de concordância prática entre diferentes bens jusfundamentais a que está adstrito o legis- lador – tanto aquele que restringe, quanto aquele que protege ou promove. 2. É para mim claro que, no caso, o legislador estava obrigado a proteger o bem jurídico vida (vida pré- -natal), tutelado pelo artigo 24.º da CRP. É para mim também claro que, no sistema finalizado do “modelo de prazos” que a Lei n.º 16/2007 instituiu, o lugar “sistémico” da protecção seria aquele conferido pelo aconselhamento dispensado antes da prática, no quadro do serviço nacional de saúde, do acto de interrupção voluntária da gravidez. Aparentemente, terá sido também essa a ideia que norteou o legislador, pois só ela pode explicar que se tenha elevado a realização da consulta obrigatória a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção dada pelo artigo 1.º da Lei, a condição de impunibilidade do acto de interrupção da gravidez. Paradoxalmente, porém, a consulta obrigatória, que deveria ser o lugar sistémico para o cumprimento do dever estadual de protecção da vida – tornando-se por isso aberta em relação ao resultado, por dela não dever resultar nenhuma imposição da conduta futura da grávida, mas comprometida quanto aos seus próprios fins, por implicar um reconhecido empenhamento do Estado quanto à desincenti- vação do aborto –, vem a ser regulada pelo legislador como se, afinal, de um estrito procedimento formal se tratasse (para além de nela não poderem estar presentes, por proibição decorrente do n.º 2 do artigo 6.º da Lei, os médicos objectores de consciência). Para a posição maioritária, que fez vencimento no Tribunal, este mero procedimento, a que fica redu- zida a consulta obrigatória, constitui só por si protecção suficiente e eficiente do bem jurídico protegido pelo artigo24.º da CRP, pelo que com ela se cumprem os deveres que, por força da norma constitucional, impendem sobre o legislador ordinário. OTribunal entendeu maioritariamente assim por duas razões funda- mentais. Primeira, porque considerando, como já se viu, que os deveres de protecção só são sindicáveis se, à evidência, houver manifesto erro de avaliação do legislador, acaba por concluir que o nível de protecção exi gida é o mínimo, e sempre o mínimo possível, nível esse naturalmente satisfeito por um mero procedimento formal. Segunda, porque concluiu também que seria incompatível com o outro princípio ou valor cons titucional que coexiste, no caso, com a necessidade da tutela da vida – a dignidade e a autodeterminação da mulher grávida, e a formação da sua decisão livre, consciente e responsável – qualquer modelo institucional que pudesse ser vivido ou sentido pela mesma grávida como juízo externo pressionante da sua conduta, ou como uma intrusão no seu processo interno de decisão. Com nenhuma destas razões posso eu estar de acordo. Não estou de acordo com a primeira porque penso, como já deixei descrito, que o critério de identificação da existência de um deficit de protecção legis lativa se não confunde com o mínimo de protecção a que se refere o Acórdão. Não estou de acordo com a segunda porque penso que, levada às últimas consequências, a ideia da necessidade de defesa da grávida perante quaisquer juízos [institucionais] externos pressionantes da sua conduta corresponde a um outro tratamento paradigmático da questão, que nem sequer chega a equacionar a existência de deveres estaduais objectivos de protecção do bem vida. De acordo com este modelo paradigmático – que é o do Roe vs. Wade – a não punibilidade do acto de interrupção da gravidez (num certo período de tempo) depende apenas de uma e só de uma condição: a vontade da gestante. Por isso mesmo, na sua privacy , tal vontade é e deve ser preservada de quaisquer juízos externos “pressionantes” de condutas. Não é, porém, esse o paradigma de que parto; nem é tão pouco esse o paradigma de que parte o próprio Tribunal na formulação do seu juízo, já que tal implicaria, quer uma ruptura – que expressamente se recusou – com todo o lastro jurisprudencial anterior, quer uma diversa equação inicial do problema que havia a resolver. Por estes motivos, concluo, diversamente da maioria, que, ao desenhar, como desenhou, o sistema decorrente dos artigos 1.º, 2.º e 6.º da Lei n.º 16/2007, o legislador ordinário não cumpriu os deveres a que está vinculado nos termos do artigo 24.º da Constituição. – Maria Lúcia Amaral.
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