TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010

220 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DECLARAÇÃO DE VOTO 1. Não acompanhei a pronúncia do Tribunal, quanto à alínea b) da decisão, tendo-me antes pronuncia- do pela inconstitucionalidade material, por violação do artigo 24.º da Constituição, das normas constantes do artigo 1.º, na parte em que introduz a alínea e) do n.º 1 e a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, 2.º, n.º 2, e 6.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007. Cumpre agora explicitar, ainda que em termos necessariamente breves, as razões da minha divergência com a posição que fez vencimento, que se manifestam quer na interpretação e implicações do parâmetro constitucional quer na apreciação do complexo normativo sujeito à apreciação do Tribunal. 2. Em sede de interpretação do parâmetro constitucional considero, com o Acórdão, que a protecção que o artigo 24.º da Constituição dá ao direito à vida (ao referir, no seu n.º 1, que “a vida humana é invio- lável”) abrange não só a vida humana já nascida mas também aquela que se desenvolve intra-uterinamente. Nestes termos, entendo que se impõe ao Estado a tomada em consideração do embrião e do feto, pelo que se lhe encontra vedada a possibilidade de se alhear juridicamente do seu destino, conformando a ordem jurí­ dica sob um princípio de atribuição ou de reconhecimento de carácter exclusivamente pessoal ou privado à decisão de abortar, subtraindo-a a toda a forma de influência de orientação que o Direito é susceptível de proporcionar. O que implica o reconhecimento de que, como qualquer outro dever de protecção constitu- cionalmente estabelecido, também o que é imposto pelo artigo 24.º, n.º 1, da Constituição é tanto negativo como positivo, gerando para o Estado não apenas o dever de omitir todas as acções susceptíveis de destruir ou afectar negativamente a vida intra-uterina, como também o de participar e intervir, promovendo-a e protegendo-a contra intervenções arbitrárias de terceiros, sem exclusão das que possam proceder da própria gestante. Revestindo tais deveres natureza indeterminada, e sendo por isso a forma como os órgãos do Estado os exercem por eles decidida sob a sua própria responsabilidade, o problema do controlo da constitucionali- dade do regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas de gestação condensado no bloco normativo formado pelos preceitos ora sob apreciação apresenta-se como um problema de verificação e sindicância do cumprimento do dever, jurídico-constitucionalmente imposto, de tutela da vida intra-uteri- na, através de normas de protecção procedentes dos instrumentos disponibilizáveis pelo direito ordinário. No seguimento das posições afirmadas pela jurisprudência deste Tribunal, reitera agora o Acórdão que a vida intra-uterina constitucionalmente tutelada o é como bem constitucionalmente protegido, sem que tal envolva a aplicação do regime constitucional especial do direito à vida, que não valeria assim directamente para a vida intra-uterina e para os nascituros. Cremos, no entanto, e neste ponto não acompanhamos já o Acórdão, que a distinção assim feita não importa verdadeiramente consequências relevantes para a análise a que importa proceder, uma vez que o reconhecimento da existência de um imperativo jurídico-constitu- cional de protecção dispensa a verificação do título a que tal protecção é assegurada, pois que, quer envolva a atribuição de um verdadeiro direito subjectivo quer se trate da (simples) protecção como valor ou bem, sempre o Estado se encontra vinculado à edição de normas de promoção e protecção através da mobilização dos instrumentos de direito ordinário (assim também Conceição Ferreira da Cunha, Constituição e crime – Uma perspectiva da criminalização e da descriminalização , Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 366). E se não cremos ser relevante uma tal distinção quanto à afirmação da existência do mandado jurídico- -constitucional de protecção da vida intra-uterina, também dela não retiramos quaisquer consequências agora quanto à questão da idoneidade de um particular meio de protecção para o cumprimento daquele mandado. Na verdade, esse juízo de idoneidade sempre pressupõe a compreensão prévia da natureza e conteúdo do bem a tutelar, e este nunca poderá ser visto como simples idealidade, mera representação do espírito ou produto do pensamento, havendo antes de lhe ser reconhecida uma preponderante dimensão ou espessura ôntica, integrado por uma determinada realidade cognoscível objectivamente, esta por sua vez constituída, segundo os dados da ciência, por todos e cada um dos seres humanos intra-uterinamente viventes, qualquer deles já portador de uma identidade genética definida, e, nessa sua unicidade, singularmente referenciável e diferenciável dos demais.

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=