TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
221 ACÓRDÃO N.º 75/10 O sistema de protecção a organizar para a vida intra-uterina, como quer que aquela se conceptualize, sempre exigirá por isso uma estrutura diferenciável da que porventura possa servir à tutela de bens jurídico- -constitucionais de natureza transindividual, metaindividual ou até mesmo difusa – por, ao invés daquele, se caracterizarem quer pela circunstância de se reportarem a uma pluralidade indeterminada ou indeterminável de sujeitos ou portadores em termos tais que não possibilitam a identificação de todos individualmente, quer pelo elemento de indivisibilidade, no sentido de que o objecto da realidade que os constitui não comporta a partilha entre os seus titulares, pertencendo como um todo a todos eles em igual medida, sem admitir a atribuição exclusiva a qualquer deles. Diferentemente, no caso da vida intra-uterina, o bem jurídico a tutelar retira a sua validade e razão de ser constitucionais da circunstância de se reportar a vidas humanas tão dife- renciáveis e independentes entre si que apenas lhe sobra em comum a circunstância de se encontrarem em estado embrionário ou fetal de desenvolvimento. O que implica a conclusão de que sempre será constitucionalmente inviável a construção de um sistema de tutela em que, para as primeiras dez semanas de gravidez, esta resulte de mera projecção retrospectiva da protecção garantida ao(s) período(s) de gestação considerado(s) subsequentemente. Ao contrário, há-de entender-se que a posição jusfundamental irradiante que, como consequência da protecção constitucional da vida intra-uterina, há que reconhecer a cada ser intra-uterinamente vivo gera para o Estado o dever de orga- nizar e conformar a ordem jurídica de uma tal maneira que a toda a expressão de vida embrionária ou fetal, independentemente da fase ou momento do processo de gestação em que se situe, seja facultado, e portanto também durante as dez primeiras semanas, através da mobilização do direito ordinário, um nível mínimo de protecção efectiva. O que exige que, a fim de não desconsiderar a densidade ou espessura ônticas do bem jurídico-constitucional a tutelar, os instrumentos de tutela disponibilizados, podendo embora exprimir uma forma de protecção diferenciada e até progressiva ao longo da gestação, disponham sempre e em qualquer caso de referencial minimamente antropocêntrico. Reconhece-se assim que o desenvolvimento do processo de gestação constitui um ponto de partida constitucionalmente viável para a instituição de um modelo de tutela progressiva, exprimindo-se aqui uma gradualidade, não na qualidade ou valor do objecto a tutelar, mas sim, e decisivamente, na relação de adequação entre o meio de protecção a mobilizar e a realidade existencial a que se dirige a tutela. Em face do que se pode dizer que o Estado, dentro da margem de conformação que lhe é reconhecida, se encontra assim obrigado a lançar mão de um instrumento de direito ordinário que assegure ao bem em causa uma protecção eficiente, sem o que estará ferido o princípio da proibição de insuficiência ou do défice de protecção. 3. A análise do carácter eficiente dessa protecção só poderá fazer-se de forma consistente em presença dos dados fornecidos pela ciência e tendo em atenção o critério da legitimidade da intervenção punitiva tal como é hoje de resto consensualmente entendido pela ciência do direito penal. 3.1 Os dados da ciência dão, actualmente como certa a ideia de que a fusão dos dois gâmetas dá lugar a um «novo organismo cujo programa de vida e desenvolvimento se não identifica com o dos seus progeni- tores». Inversamente, «cada novo ser concebido recebe uma combinação completamente original que não se havia produzido antes e que nunca mais voltará a produzir-se», encontrando-se gravado na primeira célula do novo ser vivo «o programa que organiza depois todas as células desse organigrama e que formarão parte da sua unidade». «Com a união das duas células sexuais estabelece-se um novo programa, um genotipo distinto do de cada um dos progenitores, que se mostra activo desde o primeiro momento, não obstante esta actividade se vá desdobrando gradualmente». Será «sob a influência directiva e perfeitamente ordenada desta espécie de “centro de controlo” que cons titui o genotipo» que se formará o novo organismo, numa espécie de “auto-governo biológico”».
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