TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010

222 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL «Neste desdobramento – a ontogenése – vão-se formando uma série de fases em que a seguinte não elimina a anterior, antes a pressupõe: situa-se sobre ela, assimilando-a. Todo ele segundo a particular forma de autopossessão constituída pelo genotipo do zigoto» (A. Sarmiento, G. Ruiz-Perez e J. C. Martin, Ética y genética, pp. 41-43). Conforme se pode, pois, verificar, sem exceder o âmbito da sua competência a ciência atesta hoje que um embrião derivado da união dos dois gâmetas é, desde o primeiro momento, um ser da espécie humana distinto da mãe – e não uma parte dela –, com um programa genético próprio e originariamente diferenciado. No contexto da resolução do vasto problema aqui recolocado, à ciência não competirá certamente dizer mais do que isto. Não lhe competirá, designadamente, definir o alcance ético ou jurídico dos dados que proporciona, esclarecer o seu significado ou fornecer as valorações que são próprias do Direito (neste sentido, cfr. Acórdão n.º 617/06). Mas o que está ainda no âmbito da sua competência afirmar serve para comprometer, aos olhos de quem tenha de se ocupar de tais questões, a possibilidade de uma visão integralmente despersonalizante do fenómeno ou, pelo menos, despersonalizante ao ponto de implicar a desconsideração da existência de uma situação de alteridade, excluindo a compreensão do feto como outro. Assim, se certo é que à ciência não caberá fornecer, ainda que por mera dedução lógica, o conceito de pessoa (cfr. Acórdão n.º 617/06), a informação que dela se recolhe não deixará de condicionar a acei­ tabilidade, mesmo num plano pré-constitucional, de teses que, tal como a defendida por Luigi Ferrajoli, procuram responder ao problema do estatuto do embrião e do feto na linha da defesa da ideia segundo a qual «o embrião é merecedor de tutela se e só quando pensado e desejado como pessoa pela mãe». Quando se trata de estabelecer a relevância normativa atribuível aos dados biológico-cientificos no âmbito da problemática desenvolvida em torno da tutela da vida pré-natal, duas afirmações parecem con- sensuais: a de que, por um lado, o ordenamento não pode prescindir nem ignorar as indicações da ciência, mas deve orientar-se, no mínimo, de forma compatível com elas; e a de que, pelo outro, tais dados não têm carácter prescritivo-vinculante, não substituindo, conforme acima se disse já, os juízos e as valorações que são próprios do Direito (cfr. Kolis Summerer, «Le nuove frontiere della tutela penale della vita prenatale», in Rivista italiana di diritto e procedura penale, 2003, Fasc. 4, p. 1258). Partindo de tais postulados, se tenderá a recusar-se a possibilidade de uma fundamentação exclusi- vamente biológica para o solucionamento das questões relativas, quer ao merecimento e à necessidade de tutela da vida pré-natal, quer, em especial, à natureza do meio ou instrumento a mobilizar para o efeito, do mesmo modo tenderá a aceitar-se que o reconhecimento, cientificamente atestado, de que o embrião é um ser da espécie humana distinto da mãe que o suporta, ao conferir, também pelo lado daquele, uma dimensão definitivamente ontológica ao problema, debilita a viabilidade normativa de construções que subordinem o reconhecimento do eventual grau de “pessoalidade” atribuível ao embrião à coincidente representação que dele faça a mãe, apenas admitindo a primeira onde a segunda esteja presente. Por idêntico risco de quebra da cadeia de sentido de que participam os dados biológico-científicos, os mesmos postulados tenderão a comprometer ainda a possibilidade, colocada agora no plano de uma aborda- gem penal do fenómeno, de inscrição do problema da tutela da vida pré-natal no capítulo recorrentemente dedicado à discussão da legitimidade da intervenção penal no domínio das puras violações morais ou de proposições meramente ideológicas, aqui consensualmente contestada com fundamento, entre outros, nos princípios da neutralidade moral, ideológica e cultural do Estado, do pluralismo da sociedade tolerante ou da laicidade do ordenamento jurídico-constitucional (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral , Tomo I, 2.ª edição, pp. 124-125). 3.2. Se, no plano das ciências da natureza, a modernas possibilidades de observação e estudo do feto desde a primeira fase da gravidez vêm favorecendo o reconhecimento de uma “terceira vida” e de um novo

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