TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
223 ACÓRDÃO N.º 75/10 sujeito, já no plano da ciência jurídica, mais propriamente no âmbito da reflexão desenvolvida em torno da função do direito penal, não se registam sinais de retrocedimento na defesa da chamada concepção teleo lógico-funcional e racional, prevalecendo consequentemente a ideia de que tal função só poderá consistir na tutela subsidiária ou de ultima ratio de bens jurídicos dotados de dignidade penal em consonância com o modelo valorativo jurídico-constitucional e cuja lesão se revele digna e necessária de pena (neste sentido, Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 113 e segs.) No actual estado do discurso sobre a legitimidade da intervenção penal e sua justificação, a asserção segundo a qual não pode haver criminalização onde se não divise o propósito de tutela de um bem jurídico- -constitucional subsiste como elemento de um binómio completado pela negação da validade da proposição inversa: a de que sempre que exista um bem jurídico digno de tutela penal aí deve ter lugar a intervenção correspondente ( ob. cit . p. 127). No plano da explicitação dos juízos rectores da legitimidade das opções de incriminação, assiste-se, pois, na generalidade da doutrina, à estabilização de uma já consolidada tendência para, em associação e comple- mento ao critério do bem jurídico, atribuir ao direito penal a natureza de ultima ratio da política social, reafirmando-se a natureza definitivamente subsidiária da respectiva intervenção e relegando-se esta para o plano das situações em que os outros meios de política social, em particular de política jurídica não penal, se revelem insuficientes ou inadequados. Justamente no que diz respeito a esta última categoria, regista-se ainda a propensão para a ela reconduzir as hipóteses em que a criminalização de certos comportamentos se revele, na prática, factor de muitas mais violações do que aquelas que é susceptível de evitar ( ob. cit . p. 128). Em consonância com tais postulados, assiste-se, no âmbito do pensamento desenvolvido em torno do sentido e limites da pena estatal, à subsistência da afirmação dos princípios da subsidiariedade e da efectivi- dade, definidos, na senda das propostas de Liszt, a partir das características da necessidade e da idoneidade da sanção penal: deverá recusar-se a possibilidade do castigo, por falta de necessidade, quando outras medidas de política social ou as próprias prestações voluntárias do delinquente garantam uma suficiente protecção dos bens jurídicos e, por falta de idoneidade, quando, mesmo que se não disponha de possibilidades mais suaves, a pena se revele político-criminalmente inoperante ou mesmo nociva (apud Claus Roxin, P roblemas básicos del derecho penal , in Biblioteca Juridica de Autores Españoles y Extranjeros , 1976, p. 44). No âmbito das mais recentes aproximações sociológicas à questão criminal, a (in)eficácia da sanção aparece, por outro lado, ligada à ideia de consenso social. As teorias desenvolvidas em torno da relação entre consenso social e sistema de direito penal apontam para a atribuição ao primeiro de uma posição central no conjunto das razões que determinam a observância da lei (cfr. Enzo Musco, Consenso e legislazione penale , in Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Fasc.1, 1993, pp. 81 e segs.) e, no desenvolvimento desta perspectiva, para a conclusão segundo a qual da taxa de consenso conseguido pelo Estado em torno das suas ofertas de pena (ou opções de incriminação) dependem as chances de garantir a validade sociológica do modelo comportamental encorajado com o instrumento penalísitco (cfr. Carlo Enrico Paliero, Consenso sociale e diritto penale , in Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Anno XXXV , Fasc. 3, pp. 849 e segs.). No domínio das teorias sociológicas da criminalização primária, desenvolvem-se compreensões da dico tomia necessidade de tutela/exigência de pena que rejeitam a existência de uma qualquer relação de suposição necessária, apontando-se inversamente para a ideia de que o consenso social, se se condensa essencialmente numa necessidade de tutela, pode ou não converter-se numa exigência de pena. De acordo com tais teorizações, a necessidade de tutela em que o consenso se exprime refranger-se-á quando o instrumento de tutela a mobilizar seja previsivelmente de natureza penalística, projectando-se em duas possíveis e diversas direcções: tutela com a pena e através do direito penal, por um lado; e tutela perante a pena e o direito penal, por outro. No desenvolvimento de tal ponto de vista, assiste-se à formulação de conclusões segundo as quais, nos casos em que, relativamente a um determinando modelo comportamental, a colectividade se tenda a iden- tificar prevalecentemente com a figura da vítima, o pedal do consenso social premir-se-á essencialmente em
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