TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 78.º Volume \ 2010

160 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL É ao Tribunal Constitucional que a própria Constituição atribui o papel de “guarda” ou garante último da conformidade de normas jurídicas com a Constituição. Ele funciona, nesta matéria, como um órgão de cúpula, uma vez que detém competência cassatória das decisões de todos os outros tribunais, quanto a questões de constitucionalidade das normas. Para além de acolher uma mistura de “fiscalização concentrada” no topo (Tribunal Constitucional) e de “fiscalização difusa” na base (tribunais), o sistema português de fiscalização também diverge da generalidade dos modelos europeus por não contemplar o mecanismo do reenvio prejudicial. Como refere Maria Lúcia Amaral (“Problemas da Judicial Review em Portugal”, in Themis , Ano VI, N.º 10, 2005, pp. 67-90), este me- canismo do reenvio prejudicial é «um meio estruturante de todos os processos de controlo concreto de tipo concentrado ou europeu (…) A “essência do paradigma Kelseniano exprime-se nele, visto que é precisamente o instrumento da suspensão da instância que assegura o cumprimento do princípio da separação.» Segundo a mesma Autora, a “absoluta singularidade” do sistema português de fiscalização da constitucionalidade decorre do facto de, entre nós, «a figura do reenvio prejudicial ter sido substituída pela do recurso para o Tri- bunal Constitucional», o que, além do mais, demonstra que, «em Portugal, a judicial review não se estrutura nem em torno do princípio da unidade nem em torno do princípio da separação». Em anteriores arestos, o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de salientar que o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade não pode ser confundido com o mecanismo de reenvio nem encarado como uma “questão prejudicial”. Fê-lo no já citado Acórdão n.º 596/03, que julgou inconstitucional a norma do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na versão de 1995, ou no artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na versão de 1982, na interpretação segundo a qual, na devolução de questão prejudicial para juízo não penal, aí prevista, se compreende o recurso de fiscalização concreta interposto para o Tribunal Constitucional, em pro- cesso crime, para apreciação de uma questão de constitucionalidade nele suscitada. Neste aresto entendeu-se, em síntese, que esta interpretação era incompatível com o artigo 280.º da Constituição, no qual se «prevê com clareza, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas, a existência de um recurso para o Tribunal Constitucional e não de uma espécie de mecanismo de reenvio a título prejudicial para este Tribunal, para resolução de questões de constitucionalidade que surjam na pendência de processos judiciais». 14. Do exposto retira-se, sem margem para dúvidas, que o acesso ao Tribunal Constitucional não se faz por intermédio do envio de questão prejudicial, mas sim por meio de recurso, a interpor nos próprios autos. Mas, contrariamente ao que parece vir defendido pelos recorrentes, a não configuração do recurso de constitucionalidade como envio de questão prejudicial não resolve o problema em apreço. Resolveria – e resolveu, no citado Acórdão 596/03 – se estivesse em causa o terceiro segmento normativo da alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º (anterior artigo 119.º). Mas o segundo segmento dessa norma, aqui em causa, não contempla na sua previsão uma “questão prejudicial”. Este segundo segmento há-de ter um âmbito próprio, precisamente fora do universo das “questões prejudiciais”, sob pena de não ter qualquer autonomia em face da terceira alternativa aí consagrada, o que o intérprete está impedido de presumir (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil). Qual seja, em concreto, o espaço de aplicação própria deste segundo segmento é questão de difícil res- posta, para a qual não encontrámos indicado, nem na doutrina nem na jurisprudência, um exemplo concreto. A dificuldade em descortinar hipóteses em que o processo não possa legalmente iniciar-se sem uma “sentença prévia” foi salientada no âmbito da Comissão encarregue de rever o Projecto da Parte Geral do Código Penal, sem que a essa dificuldade fosse dada qualquer resposta (cfr. Acta da 32.ª Sessão, do dia 28 de Abril de 1964, in Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal , Parte Geral, I, Lisboa, s. d., pp. 211 e seg.) Mas a eventual falta (ou, pelo menos, dificuldade) de concretização prática da previsão normativa não pode conduzir a uma assimilação entre o segundo e terceiro segmentos da norma. A resposta à questão em apreço deve, antes, concentrar-se exclusivamente no segmento normativo em apreciação, a saber, “falta de sentença a proferir por tribunal não penal”. Mas, dentro do campo problemático

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