TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 78.º Volume \ 2010

282 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório 1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca de Beja, em que é recorrente o Ministério Públicoe recorrido A., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão daquele tribunal de 4 de Junho de 2009. 2. A decisão recorrida julgou “inconstitucional por ofensa do princípio do Estado de direito democrático, enquanto garante da efectivação de direitos, liberdades e garantias [artigos 2.º e 9.º, alínea b), da Constitui­ ção], do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2), e do direito à tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º), a norma do n.º 1 do artigo 359.º do Código de Processo Penal resultante da redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto”, com a seguinte fundamentação: «Como resulta da acta da anterior sessão de audiência de julgamento, foi comunicada ao MP, ao Assistente e ao Arguido, nos termos do disposto no art. 359.º do CPP, uma alteração substancial de factos dos quais resulta a imputação a este último de um crime diverso – art. 1.º f ) do mesmo diploma legal. Em síntese, da prova produzida resultaram factos subsumíveis no tipo de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, sendo que ao arguido vinha imputada a prática de um crime de condução perigosa. O MP e o Assistente manifestaram a sua concordância. O Arguido opôs-se. Uma vez que os novos factos apurados se referem, no essencial, à intenção do arguido, não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo. Pelo que, em face do disposto no n.º1 do referido art. 359.º, os autos deveriam prosseguir, sem que ao Tribunal fosse possível ter em consideração os novos factos para efeitos de condenação. Entendo porém que tal norma ofende o princípio do Estado de direito democrático, enquanto garante da efectivação de direitos, liberdades e garantias [arts. 2.º e 9.º b) da CRP], o princípio da proporcionalidade (art. 18.º n.º2) e o direito à tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º), pelas razões que passo a expor: A função do direito penal é a tutela subsidiária de bens jurídicos dotados de dignidade penal, entendendo-se bem jurídico como «a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso» – Figueiredo Dias, in “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pp.43. É no sistema social como um todo que reside a fonte legitimadora e produtora da ordem legal dos bens jurí­ dicos. E a concretização dos bens jurídicos dignos de tutela penal só pode ser alcançada através da ordenação axiológica jurídico-constitucional. Ou seja, um bem jurídico político-criminalmente tutelável só existe quando se encontre reflectido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido, o que legitima o direito de punir estatal como forma de preservação das condições fundamentais da mais livre realização possível da personalidade de cada homem na comunidade [arts. 2.º e 9.º b) da CRP]. Assim se justifica a intervenção do Estado na restrição de direitos, liberdades e garantias na estrita medida do necessário à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art. 18.º n.º 2 da CRP) – ob. cit. pps.47 e 54. Entre o direito penal e o processual penal existe uma relação de instrumentalidade necessária, sendo este uma sequência de actos juridicamente preordenados e praticados por certas pessoas legitimamente autorizadas em ordem à decisão sobre se foi praticado algum crime e, em caso afirmativo, sobre as respectivas consequências jurídicas e sua justa aplicação (definição de Figueiredo Dias, adoptada por Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, Verbo, Volume I, 3.ª edição, pp.15). Todavia, não quer isto dizer que o processo penal não tenha interesses próprios a tutelar. A verificação da ocorrência de um crime e a aplicação da correspondente sanção não se pode fazer com recurso a quaisquer meios.

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