TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 78.º Volume \ 2010

413 ACÓRDÃO N.º 304/10 Dissenti deste entendimento. A meu ver – e foi nesse sentido que elaborei o projecto inicial que não obteve, quanto a este ponto, vencimento – deveria ter sido outra a argumentação do Tribunal, porque era outra a questão constitucional que, verdadeiramente, haveria aqui que resolver. Estava em causa, no recurso, norma constante de legislação ordinária que, regulando o exercício da acti­ vidade de segurança privada, exigia para uma das suas modalidades – a organização, em proveito próprio, de serviços de autoprotecção – a obtenção de licença, por parte das entidades que se dispusessem a empre­ ender semelhante organização. Sempre entendi que não era inconstitucional a exigência imposta por lei. No entanto, nunca pensei que o juízo de não inconstitucionalidade se pudesse fundar, exclusiva ou sequer primacialmente, no quadro constitucional que, reconhecendo a liberdade de iniciativa económica privada, delimita o âmbito legítimo de intervenção do legislador quanto à regulação desta liberdade. Actividade que se traduza (para usar as expressões da lei) na “protecção de pessoas e bens” e na “preven­ ção da prática de crimes” não é, para a Constituição, uma actividade qualquer. De acordo com o disposto no artigo 9.º, alínea b), da CRP, corresponde a mesma, antes, ao cumprimento de uma tarefa fundamental do Estado, exigida ademais pelos deveres públicos de protecção de bens constitucionais valiosos, como os decorrentes dos artigos 24.º, 25.º e 27.º e inscrita, em última análise, no âmago do próprio princípio do Estado de direito. Assim, perante a clara qualificação constitucional desta “actividade” como tarefa estadual (e, portanto, como ineliminável tarefa pública) entendi que, face ao recurso, a questão prévia e fundamental que haveria a resolver seria a de saber se, e em que medida, admitiria a Constituição o seu exercício por parte de privados. Como é evidente, a resposta não se pode colher simplesmente do texto da CRP, visto que, nele, não há nem autorização expressa nem proibição expressa da assunção, por parte de particulares, de funções de “protecção de pessoas e bens” e de “prevenção da prática de crimes”. Implicando, nestes termos, a resolução do proble­ ma um esforço de interpretação constitucional, conclui, em síntese, que: (i) sendo a garantia dos direitos e liberdades fundamentais uma tarefa pública obrigatória, necessária e irrenunciável, ao Estado caberá sempre, em matéria de segurança (“protecção de pessoas e bens e prevenção da prática de crimes”), uma responsabi­ lidade na própria execução da tarefa, e não apenas uma responsabilidade na garantia da sua execução; (ii) este princípio, como qualquer outro princípio constitucional, admitirá compressões, desde que justificadas à luz do sistema da CRP; (iii) no âmbito dessas compressões admissíveis, será constitucionalmente legítima a decisão do legislador de confiar aos privados o exercício de actividades de segurança – para efeitos de presta­ ção de serviços a terceiros ou para efeitos de organização, em proveito próprio, de serviços de autoprotecção – desde que se preserve o núcleo essencial da publicidade da tarefa, o que implica (iv) que o Estado jamais se retire, de forma integral, da responsabilidade na execução da tarefa e que (v) esteja vinculado, no domínio da responsabilidade pela garantia da execução da mesma, a fixar, ex ante, as condições que permitam o seu o exercício lícito por parte dos privados, tal como (vi) a fiscalizar, ex post, o modo concreto desse exercício. Assim, a exigência legal de obtenção de licença, em juízo no caso concreto, não só surge como algo de constitucionalmente legítimo como, mais do que isso, é – no quadro da admissibilidade de actividades privadas de segurança – algo de constitucionalmente necessário . 2. Neste contexto de ideias, a liberdade de iniciativa privada não pode surgir como parâmetro constitu­ cional idóneo para resolver o problema, que, por definição, se situa sempre fora do âmbito de protecção da norma contida no artigo 61.º, n.º 1, da CRP. É que não há lugar para a liberdade de empresa, na sua dupla dimensão de liberdade de acesso à actividade económica e de liberdade de organização da actividade que se iniciou, se a actividade que se pretende empreender se traduzir na “protecção de pessoas e bens” e na “pre­ venção da prática de crimes”. Se o Estado, em partilha de responsabilidades, decidir confiar essa actividade a privados uma vez preenchidas certas condições, pode fazê-lo permitindo, por lei, a forma empresarial de organização; tal não significa, porém, que, nessa situação, a decisão legal seja uma concretização da liberdade que o n.º 1 do artigo 61.º da CRP consagra. Não há nenhum direito fundamental ao exercício de actividades

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