TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 78.º Volume \ 2010
84 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL O entendimento jurisprudencial que se firmou no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, enquanto limita aos dois primeiros anos posteriores à maioridade ou emancipação a possibilidade de o interessado, sem paternidade estabelecida, interpor uma acção de investigação de paternidade, parte do parâmetro constitucional que resulta do n.º 1 do artigo 26.º da Constituição, reconhecendo que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão do «direito fundamental à identidade pessoal». Não deixando de pôr em relevo as razões que justificaram de jure constituto a previsão de um prazo limitativo da acção de investigação e que se prendem com a segurança jurídica dos pretensos pais e seus herdeiros (visando prevenir o prolongamento de uma situação de indefinição quanto ao estabelecimento dos vínculos de filiação), com o progressivo “envelhecimento” ou perecimento das provas (considerando que a passagem do tempo poten- cia o perigo de falibilidade da prova testemunhal, aumentando a possibilidade de fraude), e ainda com o risco de aproveitamento meramente egoístico por parte do investigante (quando apenas pretenda utilizar a acção para aceder, por sucessão, aos meios de fortuna que pertençam ao pretenso pai), a citada jurisprudência chama particu- larmente à atenção para novos elementos sociológicos e técnico-científicos que tornam justificável uma evolução nas soluções legislativas e doutrinais. A este propósito, no citado Acórdão n.º 486/04, que constitui a matriz da orientação jurisprudencial que tem sido adoptada em relação ao prazo de caducidade fixado na referida da norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, afirmou-se o seguinte: «Com efeito, tem-se verificado uma progressiva, mas segura e significativa, alteração dos dados do prob- lema, constitucionalmente relevantes, a favor do filho e da imprescritibilidade da acção – designadamente, com o impulso científico e social para o conhecimento das origens, os desenvolvimentos da genética, e a generaliza- ção de testes genéticos de muito elevada fiabilidade. Esta alteração não deixa incólume o equilíbrio de interesses e direitos, constitucionalmente protegidos, alcançado há décadas, e sancionado também pela jurisprudência, empurrando-o claramente em favor do direito de conhecer a paternidade. Grande parte da responsabilidade vai, aqui, para o peso dos exames científicos nas acções de paternidade e para a alteração da estrutura social e da riqueza, levando a encarar a outra luz a dita “caça às fortunas”. Mas nota-se também um movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens, com desenvolvi- mentos da genética, nos últimos vinte anos, que têm acentuado a importância dos vínculos biológicos (mesmo se, porventura, com exagero no seu determinismo). (…) Não deve, igualmente, ignorar-se a valorização da verdade e da transparência, com a possibilidade de acesso a informação e dados pessoais e do seu controlo, com a promoção do valor da pessoa e da sua “auto-definição”, que inclui, inevitavelmente, o conhecimento das origens genéticas e culturais. A partir de 1997, consagrou-se, aliás, expressamente um “direito ao desenvolvimento da personalidade” no artigo 26.º da Constituição (Paulo Mota Pinto, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, in Portugal – Brasil ano 2000 , Coimbra, 2000), comportando dimensões como a liberdade geral de acção e uma cláusula de tutela geral da person- alidade. E, se tanto o pretenso filho como o suposto progenitor podem invocar este preceito constitucional, não é excessivo dizer-se que ele “pesa” mais do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens.» Neste plano de avaliação, o Acórdão que vimos de acompanhar passa a desvalorizar as considerações de ordem ético-pragmática (já há pouco sintetizadas) que têm servido de fundamento à conveniência do estabelecimento de um limite temporal para a propositura de acções de investigação. Assim, e em relação aos riscos da prova relativa à matéria da filiação, quando a introdução da acção em juízo possa ser diferida no tempo, pondera-se agora que essa justificação não é de todo relevante face aos avanços cientí- ficos que têm permitido o emprego generalizado de testes de ADN com uma fiabilidade próxima da certeza e que torna possível estabelecer com grande segurança o vínculo de maternidade ou de paternidade. Também o risco de instrumentalização da acção de investigação, na perspectiva de que o investigante poderia ser motivado a agir por razões puramente patrimoniais (quando pudesse intentar a acção a qualquer tempo) tem hoje de ser avaliado à luz
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