TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 78.º Volume \ 2010

86 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Por sua vez, para a acção de impugnação da perfilhação – visando a impugnação do acto jurídico de reconhe­ cimento de filho não nascido na constância do matrimónio –, o artigo 1859.º prevê um regime aberto de legi­ timidade activa e de imprescritibilidade da acção, em que se destacam os seguintes aspectos: (a) a impugnação tem como fundamento a falta de correspondência à verdade no acto de perfilhação (e, portanto, a inexistência de uma filiação biológica); (b) a acção poderá ser proposta a todo o tempo, e mesmo depois da morte do perfilhado; (c) tem legitimidade para a propor o perfilhante, o perfilhado, o Ministério Público, e qualquer pessoa com interesse moral ou patrimonial na procedência da acção, aqui se incluindo as pessoas que sejam prejudicadas nos seus direitos sucessórios com o chamamento do perfilhado à herança do perfilhante e quaisquer parentes do perfilhante que, in- dependentemente da sua posição como seus herdeiros, tenham interesse em afastar o perfilhado da família comum. A lei, por outro lado, distingue a impugnação da perfilhação (que tem como fundamento autónomo a falta de verdade biológica) dos casos de anulação, a que se referem as disposições subsequentes, e que se baseia na existência de vícios de consentimento (erro ou coacção) ou na falta de capacidade do perfilhante (artigos 1860.º e 1861.º). Assiste-se, por conseguinte, no âmbito da impugnação da perfilhação, a um alargamento da legitimidade activa ao Ministério Público e a pessoas que tenham um mero interesse moral na procedência da pretensão (bem como a própria inexistência de um prazo de caducidade para a propositura da acção), que é bem demonstrativo do interesse público de que se reveste, na área da filiação fora do casamento, a regra da coincidência da filia- ção com a realidade biológica da procriação (neste sentido, Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. V, Coimbra, 1995, p. 267). A diversidade de regimes, acabada de expor, e, em especial, o confronto da solução legal prevista para a impugnação da perfilhação com os critérios mais restritivos do artigo 1842.º (em que se mantém a regra da cadu- cidade do direito de impugnação da paternidade presuntiva e se restringe o direito de acção ao núcleo de pessoas mais directamente interessadas), põe em destaque o relevo que o legislador confere ao interesse geral da estabilidade das relações sociais e familiares e ao sentimento de confiança em que deve basear-se a relação paternal, quando se trate de filhos nascidos na vigência do matrimónio. Na perspectiva do legislador, nas situações de paternidade presumida, a necessidade de salvaguardar a harmonia e paz familiar explicam que a ordem jurídica aceite a relação de filiação como definitivamente adquirida, a partir de determinado momento, embora sabendo que ela pode não corresponder à realidade biológica normalmente subjacente ao vínculo de paternidade (Pires de Lima/Antunes Varela, ob. cit., p. 210); ao contrário, a descoberta da verdade é erigida em interesse público, numa área de filiação em que se não coloca em perigo a estabilidade da família legalmente constituída, como ocorre em relação à impugnação da perfilhação. Por outro lado, como vimos, são, não já exigências cautelares da família conjugal, mas considerações ligadas à certeza e segurança jurídica, enquanto valores de organização social – a que se associam outros aspectos atinentes à eficácia das provas e à possível instrumentalização do direito de acção – que justificaram, do ponto de vista legisla- tivo, o estabelecimento de um prazo de caducidade para investigação da paternidade, surpreendendo-se, por isso, aqui também, uma diferença específica na razão de ser da lei que motivou a fixação de um limite temporal quer para a acção de investigação de paternidade, tal como previsto no citado artigo 1817.º (aplicável por força do artigo 1873.º), quer para a acção negatória de paternidade, a que se refere o artigo 1842.º, n.º 1, alínea a) . E foram aquelas considerações que, no Acórdão n.º 486/04, se entendeu não poderem hoje prevalecer relati- vamente ao conteúdo essencial do direito fundamental à identidade pessoal, que inclui o direito ao conhecimento da ascendência paterna, quando está em causa a investigação da paternidade. (…) Como tem sido entendido, o direito à identidade pessoal, tal como está consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, abrange, não apenas o direito ao nome, mas também o direito à historicidade pessoal, enquanto conhecimento da identidade dos progenitores, e poderá fundamentar, por si, um direito à investigação da paterni- dade e da maternidade (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, vol. I, Coimbra, p. 462). Num outro registo, a identidade pessoal, sendo o que caracteriza cada pessoa enquanto unidade individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas por uma determinada vivência pessoal, inclui também o direito à identidade genética própria e, por isso, ao conhecimento dos vínculos de filiação, no ponto em

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