TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 91.º Volume \ 2014

145 acórdão n.º 587/14 8.4. São várias as respostas que doutrina e jurisprudência propuseram para responder adequadamente à questão colocada supra. Essa resposta não passa, porém, por rejeitar a punição da situação descrita, já que esse seria um resultado interpretativo absurdo e notoriamente inconstitucional. Com efeito, constituiria uma evidente violação do princípio da igualdade admitir que a detenção de doses para dez dias fosse punida como contraordenação, e que a detenção de quantidade superior, ainda que sem a intenção de traficar, não merecesse qualquer punição da parte do ordenamento jurídico. A par deste ponto de convergência, doutrina e jurisprudência têm oscilado entre três resultados inter- pretativos. O primeiro, acolhido pelo acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ, passa por interpretar restritivamente a norma revogatória constante do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, no sentido de considerar que este preceito manteve em vigor o artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, e de que, portanto, as situa- ções de detenção ou aquisição de droga para consumo próprio não convertidas em contraordenações pelo novo diploma continuam a ser puníveis a título de crime de consumo (cfr., neste sentido, Cristina Líbano Monteiro, ob. cit. , p. 89). A obtenção de um resultado deste tipo parte de um pressuposto importante, que é o de que o n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, delimita o âmbito factual do ilícito contraordenacional previsto no n.º 1, não havendo margem para dúvida de que a conversão em contraordenação se estendeu apenas às situações de detenção ou aquisição de quantidades de droga não superiores à quantidade inerente ao consumo médio individual durante o período de dez dias. Este pressuposto não é, todavia, inteiramente partilhado. Argumenta-se, com efeito, que uma solução deste tipo é contrária ao programa político-criminal vertido na Estratégia Nacional de Luta contra a Droga, e de que, nessa medida, não há razões para crer que deva continuar a ser punido como crime um com- portamento que o legislador ambicionou “descriminalizar”. Estando aquela afastada por via interpretativa, mormente por força do elemento teleológico, resta considerar que a detenção ou aquisição de droga em quantidades superiores às fixadas no n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, é suscetível de punição a título de contraordenação (cfr., neste sentido, José Francisco de Faria Costa, “Algumas breves notas sobre o regime jurídico do consumo e do tráfico de droga”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência , n.º 3930, pp. 275 e segs.), valendo a superação do teto previsto nesse normativo como um (mero) “indício” de tráfico. A terceira solução pugna pela punição da situação descrita como crime de tráfico, nos termos dos artigos 21.º e 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93. Para ela aponta o elemento literal, visto que, mantendo-se a compreen- são de que consumo e tráfico são “tipos alternativos”, caem no tipo “tráfico” os comportamentos que não respeitarem os elementos do tipo “consumo”, mormente a estatuição aí definida sobre o que há de entender- -se por “consumo próprio”. A isto não se opõe, segundo alguns, o “tipo” previsto no artigo 21.º, porquanto o respetivo conteúdo é compatível com comportamentos que não integram a aceção tradicional de tráfico – comprar para vender. Acresce que, como já observou o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 295/03 (disponível e m www.tribunalconstitucional.pt ), “ é bem possível sustentar que o legislador, após a vigência da Lei n.º 30/2000 (...) intentou despenalizar a detenção, para consumo, de substâncias estupefacientes, enten- dendo que para esse efeito, se haveria de considerar tão-somente a detenção de uma quantidade que não fosse superior à necessária para o consumo individual durante dez dias (...), e que a detenção não permitida de quantidade superior àquela por si só haveria de ser sancionada como ilícito criminal”. Trata-se de um resultado que, independentemente da sua compatibilidade com o princípio da legali- dade criminal (artigo 29.º, n.º 1, CRP), mereceu forte crítica por parte da doutrina não só por ser contrário ao programa político-criminal gizado pelo legislador, mas também por viabilizar a punição a título de tráfico de situações em que se demonstra que o agente deteve ou adquiriu a droga para consumo pessoal, e não com o intuito de traficar (cfr. Maria Fernanda Palma, «Consumo e tráfico de estupefacientes e Constituição: absorção do “Direito Penal de Justiça” pelo Direito Penal Secundário»?, in Revista do Ministério Público, n.º 96, p. 35, e Eduardo Maia Costa, ob. cit. , p. 149). No aresto citado, porém, o Tribunal concluiria pela não inconstitucionalidade daquela interpretação normativa, considerando inexistir violação do princípio da proibição do excesso:

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