TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 91.º Volume \ 2014

181 acórdão n.º 612/14 Tais fatores de ponderação, defende a recorrente, exigem uma intervenção corretiva de adequação, designadamente no que respeita à possibilidade de sindicar perante um tribunal superior, nos processos de contraordenação, não apenas a decisão de direito, mas também a decisão de facto, que decisivamente a con- diciona, sob pena de se validar, na perspetiva constitucional, um sistema que, com a passagem do tempo, se revelou gravemente incongruente. Relevando essas considerações no plano do princípio da igualdade, também a essa luz deverá ser valo- rado, sustenta a recorrente, o facto de a lei introduzir, sem qualquer fundamento razoável, um grave fator de descriminação no regime dos recursos, ao admitir o recurso da decisão da matéria de facto nos casos em que as contraordenações são processadas conjuntamente com crimes (artigo 78.º, n.º 3, do RGCO) e ao recusar tal possibilidade nos processos que, como é o caso, apenas têm por objeto contraordenações. Mas a inconstitucionalidade da interpretação em causa, que impede o recurso da decisão sobre matéria de facto nos processos de contraordenação, decorre também do facto, na argumentação defendida, de violar o direito ao recurso que os artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n. os 1 e 10, da Constituição, reconhecem ao arguido nos processos de natureza contraordenacional. É que, defende a recorrente, não tendo a decisão administrativa que aplica a coima natureza jurisdicional, recusar a possibilidade de sindicar no tribunal da relação a decisão da matéria de facto proferida pela primeira instância equivale a negar, em tal ramo de direito sancionatório, um único grau de recurso em matéria de facto. Afigura-se, contudo, não assistir razão à recorrente. No que respeita à invocada violação do princípio da igualdade, a argumentação da recorrente assenta, numa determinada perspetiva, na alegada incongruência de um sistema que, aplicado à complexidade da sociedade atual, nega ao arguido em processos de contraordenação a possibilidade de recorrer da decisão judicial sobre matéria de facto – que se pode revelar muito complexa e fundamentar a aplicação de coimas de montante elevadíssimo –, e o admite no processo-crime em casos que podem não revestir qualquer difi- culdade de apreciação factual e implicam a aplicação de penas de multa de montante incomparavelmente inferior ao da coima. Mas os termos da comparação, por configurarem realidades qualitativamente distintas, justificam que o legislador, sem incorrer em violação do invocado princípio, adote, também em matéria de recursos, soluções distintas consoante esteja em causa a prática de um crime e aplicação das correspondentes penas (multa ou pri- são) ou a prática de uma contraordenação e a aplicação de uma coima, acrescida ou não de sanções acessórias. Como o Tribunal Constitucional tem sublinhado, em jurisprudência que não tem sofrido alterações ao longo de décadas, «são diferentes (…) os princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e a legislação das contraordenações», porque, como expressivamente se afirmou no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de julho, que pela primeira vez institui o regime geral do ilícito de mera ordenação social, «entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou meramente formal, mas de uma diferença de natureza. A contraordenação ‘é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respetivo ilícito e a reações que lhe cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal’ (Eduardo Correia, ‘Direito penal e direito de mera ordenação social’, in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1973, p. 268)». E é precisamente em razão dessa diferença, que necessariamente assume um alcance «jurídico-pragmático» (Acórdão n.º 344/93) e se projeta em diversos aspetos de regime adjetivo e substantivo, que o Tribunal Cons- titucional, reconhecendo nas infrações contraordenacionais uma «forma autónoma de ilicitude», não julgou inconstitucionais, entre outras, normas que atribuem às autoridades administrativas competência para organi- zar e instruir processos de contraordenação (Acórdão n.º 158/92); norma interpretada no sentido da inaplica- bilidade das causas de impedimento previstas no artigo 39.º, n.º 1, e 40.º do CPP, a casos em que o autor da decisão de um processo de contraordenação laboral confirmou anteriormente o auto de notícia levantado ao destinatário dessa decisão (Acórdão n.º 581/04); normas que, no pressuposto da admissibilidade da figura do

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