TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 91.º Volume \ 2014

310 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 10.ª – Por isso está firmado, na doutrina como na jurisprudência, o entendimento de que, detetada deficiência/ insuficiência da investigação realizada pelo Ministério Público, por terem sido omitidas diligências de prova con- sideradas essenciais (uma perícia, um exame, etc.) a via adequada de reagir contra o arquivamento é a suscitação da intervenção hierárquica, em ordem ao prosseguimento do inquérito (cfr., entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa, de 8.10.2002, da Relação de Coimbra, de 12.07.2006 e da Relação de Évora, de 6.11.2012, todos acessíveis em www.dgsi.pt ). 11.ª – Se no inquérito se apurar a existência de crime, mas, por deficiência da investigação, não se souber quem foi(ram) o(s) seu(s) agente(s) e o Ministério Público arquivar o inquérito, o denunciante/assistente, não se confor- mando, terá de requerer a intervenção hierárquica, pois é, ainda, uniforme o entendimento de que, à semelhança do que sucede com a acusação, que tem de ser deduzida contra pessoa identificada ou, pelo menos, identificável, por força da estrutura acusatória do processo, não é admissível um requerimento de abertura de instrução contra desconhecidos ou incertos (cfr. acórdãos da Relação de Évora, de 12.06.2012, de 15.11.2011 e de 13.05.2014, www.dgsi.pt ). 12.ª – Se o imediato superior hierárquico do autor do despacho de arquivamento desatender a reclamação, confirmando o despacho de arquivamento, o denunciante/assistente, de acordo com a peregrina tese sufragada no acórdão recorrido, não pode requerer a abertura de instrução porque ao suscitar a intervenção hierárquica renuncia ao controlo judicial, pelo JIC, da decisão do Ministério Público. 13.ª – O que é dizer que, se o ofendido reagir contra a decisão de arquivamento do inquérito respeitando rigorosamente as regras e os critérios legais, o resultado pode ser a impossibilidade de confrontar judicialmente essa decisão. 14.ª – É de tal modo evidente que tal entendimento leva a resultados iníquos que não se vê como negar que tal interpretação dos preceitos legais em causa viola, frontalmente, a garantia constitucional de tutela jurisdicional efetiva consagrada no artigo 20.º, n.º 1, da CRP. 15.ª – Nessa interpretação, se o Ministério Público, por incúria, incompetência ou falta de objetividade, arquiva o inquérito, o ofendido que, procedendo de acordo com os cânones legais, suscitou a intervenção hierárquica, pode ver o seu caso injustificadamente findo, sem que se faça justiça e sem nada poder fazer contra isso. 16.ª – Como anotam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira ( Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 415), “o significado básico da exigência de um processo equitativo é o da conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efetiva”. 17.ª – Ora, como se crê ter ficado demonstrado, aquela interpretação (que tem prevalecido na jurisprudência) não tutela o legítimo interesse do ofendido/assistente na submissão a julgamento e na condenação daquele que praticou um crime que o afetou, pois conduz a que um inquérito possa ser encerrado pelo Ministério Público sem que o interessado possa submeter a sindicância judicial o despacho de arquivamento, assim se negando expressão à garantia constitucional da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.º 1, da CRP). 18.ª – Se é certo que a atuação do Ministério Público tem de obedecer a critérios de estrita objetividade (artigo 53.º, n.º 1, do CPP), na prática, nem sempre assim acontece (este caso é exemplo disso mesmo) e, como adverte o Professor Figueiredo Dias, o poder que lhe advém da autonomia de que goza (e tem consagração constitucional) não pode tornar-se “num poder autárcico anticonstitucional” (“Autonomia do Ministério Público e seu dever de prestar contas à comunidade: um equilíbrio difícil”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC), 2007, Fasc. n.º 4, 196 e segs.). 19.ª – Daí que só um efetivo controlo jurisdicional da decisão de abstenção de acusação pelo Ministério seja capaz de satisfazer as crescentes e legítimas exigências comunitárias de transparência no exercício da ação penal, exigências que são postergadas pela interpretação normativa cuja inconstitucionalidade se pretende seja declarada. Pelas razões que expõe, pretende o recorrente que se declare a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 278.º, n.º 2, e 287.º, n.º 1, alínea b) , do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, se o assistente ou o denunciante/ofendido com a faculdade de se constituir assistente, reagir contra a decisão de arqui- vamento do inquérito suscitando a intervenção hierárquica, assim respeitando rigorosamente as regras e os critérios legais, vê sempre, em quaisquer circunstâncias, precludida a possibilidade de requerer a abertura de instrução para

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