TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 91.º Volume \ 2014

619 acórdão n.º 847/14 14. Aqui chegados, cumpre transpor para a norma em apreciação os padrões de aferição da conformi- dade das normas infraconstitucionais com o princípio paramétrico da proteção da confiança. Neste sentido, importa começar por sublinhar a legitimidade e plena justificação das expetativas dos titulares de documentos particulares a que a lei atribuiu expressamente força executiva na exequibilidade do título de que se muniram. A alteração ao CPC de então que veio reconhecer estes documentos como títulos executivos deve ser lida no contexto da evolução da legislação em matéria de ação executiva, e em especial no que respeita à definição dos títulos executivos, no sentido da diminuição das exigências formais para a concessão da característica de exequibilidade a documentos particulares. A extensão da exequibilidade aos documentos particulares constitutivos da obrigação de entrega de coisas fungíveis, com a reforma de 1961, a que se seguiu a dispensa de reconhecimento notarial da assinatura do devedor nas letras, livranças e cheques de valor inferior à alçada da Relação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 533/77, de 30 de dezembro, mais tarde alargada a todos os títulos de crédito, independentemente do valor por via do Decreto-Lei n.º 242/85, de 9 de julho, culminando no alargamento da exequibilidade de documentos particulares relativos a obri- gações pecuniárias de montante «determinável por simples cálculo aritmético», ou documentos relativos a obrigações de entrega de «coisas móveis infungíveis» e ainda às obrigações de «prestação de facto positivo ou negativo» com dispensa generalizada de reconhecimento notarial, bastando a imputação ao executado da assinatura nele inscrita, desde que do seu conteúdo derive o reconhecimento ou a constituição de alguma das obrigações previstas, inserem-se numa «linha que revela a tendência do legislador para a ampliação do âmbito de influência direta da ação executiva, sem intermediação da ação declarativa» (A. S. Abrantes Geraldes, “Títulos Executivo”, in A Reforma da Acção Executiva, Thémis, ano IV – n.º 7 – 2003, pp. 38-39). De concluir será, portanto, que, nesta matéria, o legislador atuou de forma a gerar nos particulares expe- tativas de continuidade que os determinaram à realização de planos de vida, pressupondo a continuidade do comportamento estadual. A concretização dos ditos planos traduziu-se no municiamento com documento bastante (à data da formação do título) para garantir a imediata execução do seu crédito, através da recolha de um documento particular de reconhecimento de dívida assinado pelo devedor. Os cidadãos atuaram de acordo com um comportamento social normal, respeitador do enquadramento legal aplicável, confiando na sua estabilidade, pois nada fazia prever que fosse retirado o valor de título executivo a esses documentos. Como nota o Ministério Público nas alegações produzidas nos autos, «muitos dos credores que são, pre- sentemente, titulares de um mero documento particular (assinado pelo devedor, e que importe constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes), que à data da sua constituição consubstan- ciava título executivo, poderiam, oportunamente – caso fosse previsível a alteração legislativa sob escrutínio –, ter obtido, dos devedores, a subscrição de documento formalmente mais exigente (máxime documento exarado ou autenticado por notário), cuja exequibilidade não seria, assim, eliminada». Facilmente se deduzirá, por conseguinte, que os credores que aceitaram os documentos particulares assinados pelos devedores como garantias dos seus créditos, dotadas de exequibilidade, determinaram os seus atos/negócios na convicção de que o legislador manteria as regras por si criadas, não retirando aos aludidos documentos, imprevisivelmente, a natureza que possuíam à data da sua constituição. 15. Demonstrada a verificação de uma mutação inesperada da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas não podiam contar, o que causou uma afetação das suas legítimas expetativas, cabe, portanto, apreciar se existem razões de interesse público que justifiquem aquela afetação. E mesmo que se conclua pela premência do interesse público na mudança do regime legal vigente, ainda assim será necessá- rio aferir se a medida do sacrifício é «inadmissível, arbitrária e demasiado onerosa» (cfr. Acórdão n.º 287/90). É o que procuraremos avaliar de seguida. Aceita-se, sem esforço, que a opção por um elenco mais modesto dos títulos executivos valoriza a segu- rança jurídica, impondo, por exemplo, maiores cautelas formais na verificação da autenticidade das decla- rações ou assinaturas constantes dos documentos ou obrigando à propositura da ação declarativa. Uma tal

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