TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 91.º Volume \ 2014

657 acórdão n.º 852/14 da tipicidade penal, consagrado no artigo 29.º da CRP. Esta jurisprudência, decidida logo nos primeiros anos da sua atividade (Acórdão n.º 353/86) e continuada num número assinalável de arestos (a título de exemplo: Acórdãos n. os 634/94, 154/98, 674/99, 331/03 e 524/07) sustentava-se no entendimento segundo o qual residiria aqui uma fronteira que o Tribunal Constitucional não poderia ultrapassar. Embora não fosse unânime tal entendimento (em sentido contrário: Acórdãos n. os 141/92, 205/99, 122/00, 412/03 e 110/07) vale bem a pena recordar as razões que então o sustentavam. Entendia-se que, estando os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional limitados ao conhecimento de questões de constitucionalidade de normas e só de normas, e residindo a sua razão de ser na competência específica para administrar a justiça em matérias jurídico-constitucionais (artigo 221.º da CRP), quer um quer outro limite seriam ultrapassados caso se aceitasse conhecer de recursos em que se questionava a consti- tucionalidade de uma decisão judicial, com fundamento em violação do princípio da tipicidade, consagrado no artigo 29.º [ou 103.º] da Constituição. Por um lado, receava-se que, se tal acontecesse, o Tribunal deixaria de ser apenas um Tribunal de normas para passar a ser, também, um Tribunal de decisões, e isto à margem do seu estatuto constitucional; por outro lado, entendia-se que, com tal deriva, se poderia pôr em causa a própria especificidade da jurisdição constitucional, transformando-a (ou, melhor dito: desfigurando-a) em instância revisora das decisões dos tribunais comuns quanto à interpretação do direito infraconstitucional. Quando, em 2008, se deu a “viragem” jurisprudencial, e o Tribunal deliberou, num Plenário fortemente dividido (Acórdão n.º 183/08), passar a conhecer destas questões, fê-lo pelo entendimento segundo o qual, nelas, ainda estaria a exercer a sua competência de guardião último da Constituição, uma vez que, nos casos em que os tribunais comuns criassem normas aí onde só o legislador pudesse atuar (por lei escrita, estrita e certa) estaria o poder judicial a agir, invadindo um campo reservado pela Constituição ao poder legislativo. A assunção do controlo por parte do Tribunal Constitucional, neste entendimento maioritário, justificar-se- -ia por duas razões fundamentais: primeira, porque se estaria ainda a garantir o cumprimento de princípios constitucionais de especial grandeza – os consagrados nos artigos 29.º e 103.º da CRP; segunda, porque se permaneceria no campo estrito do controlo de normas e só de normas, uma vez que o pressuposto da atuação do Tribunal residiria precisamente neste dado: o tribunal a quo, com a sua atividade interpretativa, teria nes- tas circunstâncias criado norma nova, não subsumível a qualquer outra já existente, aí onde a Constituição claramente proibia que o fizesse. Subescrevi esta “viragem” jurisprudencial. Contudo, fi-lo com a consciência de que ela teria que ser vivida no futuro com especiais cautelas, uma vez que a partir daí se entrava (como sempre tinha sido subli- nhado na jurisprudência anterior) numa zona de contornos fluídos, onde facilmente se poderia passar do controlo de normas para o controlo das decisões judiciais e do seu iter interpretativo, confundindo-se assim a competência específica do Tribunal Constitucional – e que é a da interpretação da Constituição – com aquilo que cabe aos tribunais comuns – e que é a interpretação do direito ordinário. Votei vencida nesta decisão porque creio que, com ela, se passou esta fronteira. O acórdão censura a decisão do tribunal a quo por ela ter seguido certa interpretação da norma perti- nente do Direito Penal. Diz-se que, pelo facto de o ter feito, se violou o artigo 29.º da Constituição. Mas fica por esclarecer em que medida, ou por que motivo, tal legitima a intervenção do Tribunal Constitucional através do juízo de inconstitucionalidade com todas as suas consequências. Qual foi ao certo a norma nova, não subsumível a norma já existente, que o tribunal a quo, através de um processo constitucionalmente proi- bido, com esta decisão criou? E em que preciso momento do iter interpretativo se terá passado a fronteira que separa a atividade de subsunção dos factos ao tipo legal – atividade própria e exclusiva da Jurisdição comum – da criação jurisprudencial de uma norma sem respaldo na lei escrita, estrita e certa? Como o Acórdão con- tém essencialmente uma crítica da decisão judicativa tendo em conta a communis opinio da doutrina sobre a matéria fica-se sem resposta para todas estas perguntas. Por esse motivo, fica-se também sem saber o que é que legitimou a intervenção do Tribunal Constitu- cional neste domínio, com todas as consequências negativas que daqui decorrem. É que é absolutamente certo que compete exclusivamente aos tribunais comuns a atividade interpretativa que consiste na subsunção

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