TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 94.º Volume \ 2015
122 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL aproveitamento agrícola.” Deste modo, a disposição do terreno baldio apenas era possível nos casos de utilidade pública, e sempre com a salvaguarda do interesse dos compartes e segundo os limites e fins a que o baldio se destina. 28. Todavia, na redação dada na lei n.º 72/2014, de 2 de setembro, subverte-se a regra de não disposição dos baldios, ao alterar o artigo 10.º de modo a permitir que os baldios possam “ser objeto, no todo ou em parte, de arrendamento ou cessão de exploração, com vista ao aproveitamento dos recursos dos respetivos espaços rurais (…).” Acrescentando no n.º 3 que a exploração deverá ser realizada de forma sustentada, sem prejuízo da utilização do baldio pelos compartes, de acordo com os usos e costumes locais. 29. Deste modo, comparando a nova redação com a prevista na lei n.º 68/93, de 4 de setembro, a disposição do baldio passa de uma medida transitória para uma livre disposição, não apenas por necessidade de povoamento ou exploração florestal, ou seja, por motivos de utilidade pública, mas por qualquer motivo. Assim, permitir-se-á que um bem comunitário, que foi desde tempos imemoráveis fruído e gerido por certas comunidades, sendo muitas vezes a forma de sustento de muitas famílias, possa agora ser arrendado e a ser utilizado para outros fins. 30. Como refere o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 235/91, “já o Código Civil de Seabra, de 1867, apesar de um contexto doutrinário avesso às formas coletivas de propriedade, mencionava os baldios à cabeça das «coisas comuns», categoria que o Código punha a par das «coisas públicas» e das «coisas particulares», sendo con- sideradas «coisas públicas» os bens do domínio público propriamente dito do Estado ou outra entidade pública, «coisas particulares», as do domínio privado de particulares ou de entidades públicas, e «coisas comuns», as coisas não individualmente apropriadas, das quais só é permitido tirar proveito […] aos indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa ou fazem parte de certa corporação pública. 31. Da lei n.º 68/93, de 4 de setembro, resulta que os baldios são terrenos possuídos e geridos por comunida- des locais, não sendo deste modo propriedade, nem dos compartes, nem do respetivo universo de compartes. Não existe direito de propriedade, mas apenas de uso e fruição pelos compartes. 32. Refere o já citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 325/89, que “a Constituição procurou marcar tam- bém um energético retorno da titularidade dos bens comunitários aos povos, pondo termo ao processo histórico de privação que desde há muito, e por várias formas, conduziu ao esvaziamento dos tradicionais patrimónios coletivos. 33. O facto de o baldio poder ser arrendado, em parte ou na totalidade, vai fazer com que o mesmo passe de uma gestão comunitária para a uma gestão particular, passando a ser utilizado de acordo com o interesse de quem o arrendou, sendo assim subvertida a própria finalidade do baldio. Ao ser gerido por uma entidade privada mesmo conti- nuando a ser considerado propriedade comunitária, é agora integrado no setor privado, violando o previsto na alínea b) do n.º 4 do artigo 82.º da Constituição. O artigo 10.º da lei n.º 72/2014, de 2 de setembro é, assim, inconstitucional. 34. Sem prejuízo da inconstitucionalidade das normas referidas poder ser vista em separado, pode-se também refletir pela inconstitucionalidade das normas ora impugnadas, vendo-as conjugadas. 35. Desta maneira, com o alargamento do âmbito subjetivo do baldio a todos os eleitores de uma determinada freguesia, qualquer eleitor, agora comparte, poderá por motivos egoísticos (mormente económicos, como acontece, por exemplo, com a indústria da celulose) querer arrendar o terreno ou querer dar de arrendamento o terreno, em prejuízo dos demais compartes e do próprio fim do baldio. 36. Deste modo se compreende que a alteração dos artigos 1.º (n.º 3 e 4) e 10.º da Lei dos Baldios por via da lei n.º 72/2014, de 2 de setembro, é inconstitucional por violação da alínea b) do n.º 4 do artigo 82.º da Constituição, pois permite não só que o uso e fruição dos baldios seja extensivo a cidadãos que segundo os costumes e usos da região a tal não tenham direito, como subverte a ratio da norma constitucional, possibilitando a disposição a pri- vados de um terreno que deverá servir uma comunidade e dentro do que historicamente e consuetudinariamente é considerado a fruição e uso do terreno baldio». 2. Pedido formulado no âmbito do processo n.º 337/2015 Um grupo de deputados à Assembleia da República requereu a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas resultantes das «alterações» aos artigos 1.º, n.º 3, 4.º, n.º 2, alínea d) , 10.º, 15.°, n.º 1, alínea f ) , e n.º 2, e artigo 21.º, alínea f ) , todos da Lei n.º 68/93, de 4 de setembro, «previstas no artigo 2.º da Lei n.º 72/2014, de 2 de setembro», por «violação do disposto nos artigos 80.º, alínea f ) , e 82.º, n. os 1 e 4, alínea b) , da Constituição».
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