TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 94.º Volume \ 2015

186 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL prossecução das tarefas essenciais do Estado, por outro, esse foi o da interpretação das normas da CRP relativas às (impropriamente chamadas) «constituição penal» e «constituição processual penal». No primeiro campo – o da chamada «constituição penal» – foi o Tribunal gradualmente definindo, desde o início da sua fundação, um sistema interpretativo que procurava conciliar as exigências básicas do Estado de direito (atra- vés, nomeadamente, da definição do princípio da culpa, do princípio da necessidade de pena e do princípio da legalidade) com a liberdade de conformação do legislador na definição das políticas criminais que enten- desse necessárias, em cada tempo histórico, para a garantia de preservação de bens jurídico-constitucionais de primeira grandeza; no segundo campo – o da chamada «constituição processual penal» – a construção gradual do sistema traduziu-se na definição de uma jurisprudência em que a tutela eficiente das garantias dos direitos de defesa do arguido em processo penal (artigo 32.º da CRP) coexistia com o assegurar da raciona- lidade do sistema judiciário. O pressuposto deste equilíbrio, que a jurisprudência sempre procurou alcançar no domínio processual penal, entre a tutela de posições jusfundamentais e a tutela da racionalidade da organização dos tribunais, residia na ideia – que me parece central em Estado de direito – segundo a qual existe, inevitavelmente, uma estreita relação entre uma coisa e outra. Em Estado constitucional, o legislador não está só negativamente vinculado a respeitar as posições jusfundamentais dos cidadãos; está também positivamente obrigado a pro- tegê-las e a promovê-las, tarefa que só será realizável através de um racional e eficiente sistema de justiça. Por isso, os dois valores constitucionais – a tutela dos direitos, por um lado, e a eficiência do sistema de justiça, por outro – formaram sempre um tandem que o Tribunal nunca deixou de ter em conta de cada vez que foi chamado a julgar normas infraconstitucionais respeitantes a matéria como esta, dotada da especial sen- sibilidade que o nome (que frequentemente lhe é atribuído) de direito constitucional concretizado só por si denota. E foi a permanente consideração desse tandem que assegurou, segundo creio, a realização contínua de um equilíbrio jurisprudencial, laboriosamente construído e sedimentado ao longo do tempo, que a pre- sente decisão – em meu entender – subitamente rompe. 2. Com efeito, através dela entende-se que a Constituição portuguesa impõe que haja sempre recurso para instância superior de qualquer primeira condenação em pena privativa de liberdade, e isto indepen- dentemente de qual seja a intensidade dessa primeira condenação e de qual seja a instância que a profira – e ainda portanto que a condenação seja proferida por tribunal superior, através de decisão que julgue recurso interposto de anterior absolvição. Ao entender-se que assim é, entende-se também que, doravante, se deve interpretar o conteúdo do «direito ao recurso», consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da CRP, de forma subs- tancialmente diversa daquela que, até agora, tem sido a constantemente seguida pelo lastro, já antigo, da jurisprudência. De acordo com esse lastro – paradigmaticamente definido, por exemplo, pelo Acórdão n.º 49/03 – a interpretação da Constituição neste domínio (relativamente ao que seja o conteúdo do «direito ao recurso») teria antes do mais que partir do dado insofismável segundo o qual a existência de uma hierarquia de tri- bunais (artigo 210.º da CRP) consubstanciava também ela própria uma garantia constitucionalmente reco- nhecida; e que, assim sendo, a determinação de qual fosse o sentido e fundamento do direito ao recurso, enquanto direito constitucionalmente protegido, era tarefa que se não poderia empreender se se não tivesse devidamente em linha de conta este outro dado, nos termos do qual era a própria Constituição que distin- guia – garantindo, portanto, a indisponibilidade dessa distinção por parte do legislador ordinário – entre tribunais de primeira instância, tribunais de segunda instância e Supremo Tribunal de Justiça. Desta pre- missa, que foi sempre aquela que estruturou o pensamento do Tribunal na matéria, extraía-se depois a ilação segundo a qual, estando o fundamento do direito ao recurso «desde logo, na ideia de redução do risco de erro judiciário», o reexame do caso por um novo tribunal [propiciado, justamente, pela interposição de recurso para instância superior] viria «sem dúvida proporcionar a detecção de tais erros, através de um novo olhar sobre o processo» (Acórdão n.º 49/03, ponto 4); e que, se assim era em geral, também o seria em processo criminal (onde, como se sabe, o direito ao recurso adquire particular peso jusfundamental), uma vez que

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