TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 94.º Volume \ 2015

187 acórdão n.º 412/15 «[estando] em causa a faculdade de [o arguido] expor perante um tribunal superior os motivos – de facto e de direito – que sustentam a posição jurídico-processual da defesa», a «tónica» do direito ao recurso seria «posta na possibilidade de o arguido apresentar de novo, e agora perante um tribunal superior, a sua visão sobre os factos, ou sobre o direito aplicável, por forma a que a nova decisão [pudesse] ter em consideração a argumen- tação da defesa» ( ibidem ). Destas duas ilações, conjuntamente tomadas, concluía-se que «os fundamentos do direito ao recurso [entroncavam] verdadeiramente na garantia do duplo grau de jurisdição» ( ibidem ), o que permitia a final que se proferisse a seguinte afirmação: «[estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamento razoável para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias» ( idem , ponto 5). É, portanto, esta a interpretação que agora se inverte, ao julgar-se inconstitucional, por violação do direito ao recurso «enquanto garantia de defesa em processo criminal», a norma do Código de Processo Penal que «estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face a absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena privativa de prisão efetiva não superior a cinco anos». Esta inversão baseia-se na afirmação de dois argumentos que, para além de serem novos, se apresentam logicamente interligados. De acordo com o primeiro, entende-se que deve perder validade o nexo, anterior- mente afirmado, entre o conceito constitucional de «direito ao recurso», por um lado, e a ideia de «duplo grau de jurisdição», por outro. Até agora, a jurisprudência do Tribunal sobre a matéria fundava-se na afirma- ção deste nexo. E fazia-o, não por entender que existisse identidade conceitual entre ambas as coisas («direito ao recurso» e «duplo grau de jurisdição»), mas por entender que a determinação do conteúdo do primeira era tarefa que se não podia empreender sem que se tivesse em linha de conta o conteúdo da segunda. Com a nova orientação, dada pelo presente julgamento, é a afirmação deste nexo que se desfaz, uma vez que se considera ser irrelevante para a determinação do que seja o sentido constitucional do direito ao recurso o facto de a (primeira) condenação em pena de prisão ser proferida em segunda instância [ou em duplo grau de jurisdição] por recurso interposto de anterior absolvição. Deste primeiro argumento outro decorre, a susten- tar basicamente a nova orientação jurisprudencial. De acordo com ele, a Constituição portuguesa conferirá um peso tal ao valor da liberdade (artigo 27.º da CRP) que implicará sempre e em quaisquer circunstâncias a preponderância desse mesmo valor sobre a consideração de quaisquer outros bens e interesses constitucio- nalmente reconhecidos, sejam eles a garantia da existência de uma hierarquia de tribunais (artigo 210.º da CRP) – com tudo o que daí decorre para a justificação substancial, e não apenas formal, de uma distinção, constitucionalmente garantida, entre tribunais inferiores e tribunais superiores – ou a racionalidade da orga- nização do sistema de justiça, sem a qual não pode ser garantido o direito a uma decisão judicial em prazo razoável (artigo 20.º, n.º 4, da CRP). Na verdade, só através da afirmação deste argumento – segundo o qual, repete-se, o valor da liberdade, por si só, primará sobre quaisquer outros interesses e valores constitucional- mente reconhecidos – se pode compreender que se considere que a Constituição impõe que haja recurso de qualquer primeira condenação em pena de prisão efetiva, qualquer que seja a sua intensidade e qualquer que seja a instância que a profira. A imposição constitucional de um terceiro grau de jurisdição nestas circunstân- cias (de primeira sentença condenatória), imposição essa que para todos os efeitos o presente Acórdão afirma existir, só pode ser justificada se se entender que, no sistema da CRP, o valor da liberdade tem um peso tal que prima sempre e por si só sobre o peso a dar aos outros valores constitucionais que, até agora – e como já se viu – a jurisprudência sempre considerou adquirirem, na matéria, especial relevância. 3. Creio que esta nova orientação, pelas consequências que dela decorrem para a modelação do sistema de recursos em processo criminal, merece apertado escrutínio; e que esse escrutínio deve começar por ser de índole comparativa. Na verdade, não raras vezes o Tribunal, quando confrontado com questões difíceis de interpretação das normas da CRP respeitante a direitos fundamentais, tem feito apelo à comparação entre ordenamentos, por entender que de tal comparação se podem extrair elementos auxiliares para a correta determinação de sentido das normas que tem que interpretar. Foi assim, como se sabe, quer – e para referir apenas alguns exemplos – na questão da reserva da propriedade das farmácias (Acórdão n.º 76/85, ponto 4,

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