TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 94.º Volume \ 2015
191 acórdão n.º 412/15 o grau de intensidade suficiente que impeçam uma surpreendente, não antevista e por isso não contra- -argumentada, reversão da absolvição em condenação; e, assim sendo – conclui-se – haverá que entender-se que, perante esta «liquefacção» da garantia dada pelo duplo grau de jurisdição, a Constituição impõe, nestas circunstâncias, a existência de um terceiro grau. Caso contrário – diz-se ainda – será o próprio direito ao recurso, consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da CRP, que resultará violado. É, pois, com base nas múltiplas alterações legislativas entretanto ocorridas, e que terão afetado a pleni- tude das possibilidades de defesa do arguido perante o julgamento em segunda instância – alterações essas cuja enumeração agora não repito, pois que me parecem suficientemente descritas no trecho da fundamen- tação que vai do ponto 13.1. ao ponto 19. do Acórdão – que se considera não poder hoje sustentar-se «que a decisão condenatória proferida pela Relação tem por base o mesmo objeto da decisão recorrida» (ponto 20), pelo que «[também hoje se não poderá afirmar] que o novo julgamento na instância de recurso acau- tela devidamente a oportunidade de defesa» ( ibidem ). Por assim ser, conclui-se, a irrecorribilidade de uma primeira decisão condenatória em pena de prisão efetiva – qualquer que seja a sua intensidade e ainda que proferida em recurso para tribunal superior – viola o direito consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da CRP. A «perda de validade» da anterior argumentação do Tribunal, segundo a qual o fundamento do direito ao recurso «entroncava» na existência de um duplo grau de jurisdição, fica portanto, no entender da maioria, assim demonstrada. 6. Não subscrevo esta demonstração. Na realidade, penso que o raciocínio que lhe subjaz pressupõe um erro de perspetiva que decorre de um vício lógico. Se, na verdade, o estado atual do direito infraconstitucional leva a supor que o recurso para uma segunda instância não salvaguarda todas as garantias de defesa do arguido em processo penal, que, por causa desse deficit da regulação de direito ordinário, pode vir a ser «surpreendido» por uma condenação por tribu- nal superior que reverte anterior absolvição e face à qual não teve hipótese de se defender, o problema de constitucionalidade existe e é grave. Contudo, tal problema tem como objeto, não a norma que consagra a irrecorribilidade das decisões de segunda instância, mas o conjunto de normas que, alterando um sistema antes presumivelmente harmonioso, diminuíram as possibilidades de defesa do arguido no recurso da deci- são de primeira instância. Se o estado atual do direito infraconstitucional tornou ineficaz, para uma integral garantia dos direitos fundamentais consagrados, não apenas no artigo 32.º, mas também no artigo 20.º da CRP, a existência do duplo grau de jurisdição, o problema reside, evidentemente, na modelação dada pela legislação ordinária à forma como esse duplo grau se processa e não em qualquer outro lado. Pensar que o aniquilamento das garantias dadas por esse duplo grau, tornado pelo legislador ordinário não significativo ou irrelevante, se resolve pela conclusão segundo a qual a Constituição portuguesa imporá a existência de um terceiro grau – para substituir o segundo, que já não serve – não é apenas um erro de perspetiva. É um verdadeiro non sequitur lógico, que tem a consequência, a meu ver grave, de sacrificar inteiramente um valor que a jurisprudência constitucional portuguesa sempre sublinhou – o da necessária salvaguarda da raciona- lidade do sistema de justiça. Com efeito, encontram-se aqui imbricadas duas questões diferentes que não podem ser confundidas. Uma é a questão de saber se as alterações entretanto introduzidas no sistema de recursos fixado pela lei processual penal satisfazem plenamente as exigências decorrentes do direito a um duplo grau de jurisdi- ção. Outra a questão de saber em que circunstâncias é que se deve entender que, existindo julgamento em segunda instância, ainda assim impõe a Constituição que se abra nova via de recurso para tribunal superior. Não se contesta que, nos casos em que tenha havido absolvição em primeira instância, a lei processual penal tem o especial dever de modelar o recurso para a segunda instância, e o julgamento que nela se pro- cessa, de forma a assegurar todas as garantias de defesa do arguido. Isso mesmo o tem dito a jurisprudência do TEDH, em aplicação conjunta do disposto quer no artigo 6.º da CEDH (direito a um processo equitativo) quer no artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção (direito a um duplo grau de jurisdição). A forma como se devem aplicar as regras do processo equitativo ao julgamento em segunda instância penal – de modo a tornar
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