TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 94.º Volume \ 2015
547 acórdão n.º 634/15 segundo – e decisivo argumento – assentou na circunstância de a norma visar «a salvaguarda de um interesse público que deve ser tido por prevalecente» (fls. 195). Não é necessário, tendo em consideração aquilo que está em causa num recurso de constitucionalidade, insistir no direito infraconstitucional, escrutinando a “verdadeira natureza” das concessões de viagem. É suficiente assentar em dois pontos. Em primeiro lugar, não se vê como considerar verificado o investimento de confiança: a) A norma criadora da prestação não é uma norma do Estado – nem do Estado legislador, nem do Estado administrador – mas uma norma de natureza contratual, acordada entre as entidades patro- nais e os representantes dos trabalhadores; b) No contexto económico-financeiro em que se vivia em Portugal à época, se alguma expetativa os trabalhadores das empresas públicas de transportes poderiam ter era a da redução, ou mesmo sus- pensão, de tais prestações – e não da sua continuidade integral ad aeternum ; c) Não se descortina como uma norma destas poderia ter servido de fundamento a «planos de vida» dos trabalhadores; Em segundo lugar – e este é o argumento que se afigura decisivo, como já o foi para o autor da decisão recorrida –, mesmo que tenham sido traídas expetativas, essa “traição” foi justificada à luz das poderosas razões de interesse público, amplamente conhecidas, que justificaram, «em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa» (fls. 192). É que, como este Tribunal reconheceu mais de uma vez, as graves dificuldades económico-financeiras que o país atravessava explicavam e justifi- cavam alguma medida de afetação temporária de direitos e expetativas de trabalhadores pagos por verbas públicas (cfr., por todos, os Acórdãos n. os 396/11 e 574/14). Não se comprova, desta forma, ofensa do princípio da proteção da confiança. 9. O n.º 2 do artigo 105.º da CRP impõe que o OE tenha em consideração as «obrigações decorrentes de lei ou de contrato». Entende a recorrente que este imperativo constitucional é ofendido pela norma legal sob escrutínio. Facilmente se comprova a proximidade entre a norma constitucional e o princípio da proteção da con- fiança: na verdade, trata-se de um verdadeiro corolário deste princípio. O contrato, corporizando uma con- fluência de vontades que, no caso dos contratos sinalagmáticos, reciprocamente se condicionam, constitui uma espécie de “cristalização” da confiança que o comportamento de cada uma das partes suscita na outra. É isso que justifica a conhecida expressão latina pacta sunt servanda . Ora, tendo já considerado que a norma legal, ao derrogar temporariamente o regulamento de conces- sões de viagem, não ofende o princípio da proteção da confiança, incongruente seria que aqui se concluísse pela sua inconstitucionalidade por violação da norma convencional coletiva que suporta tal regulamento. Esta haverá de ter-se por igualmente justificada. 10. O raciocínio subjacente à alegação da recorrente no sentido da ofensa do princípio da boa fé parece poder estruturar-se da seguinte forma: o Governo, nas vestes de órgão de tutela da CP, consentiu que o órgão de gestão desta aprovasse o regulamento de concessões de viagem; aprovado este, mudou de vestes e, atuando desta feita como órgão legislativo, revogou este regulamento. Simplificando, pode dizer-se que a função primordial do princípio da boa fé é estabelecer um padrão ético de conduta. No domínio jurídico-público, esse padrão ético de conduta é exigível aos órgãos do Estado e de outros entes públicos. A simples leitura do artigo 10.º do Código do Procedimento Administrativo com- prova como este princípio se relaciona intimamente com o princípio da proteção da confiança: os órgãos da Administração Pública devem ponderar «os valores fundamentais do Direito relevantes em face das situações consideradas» e «em especial, a confiança suscitada na contraparte pela atuação em causa». É esta ideia de respeito pela confiança gerada no “outro” que explica que a faceta mais referida do princípio da boa fé, no
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