TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 94.º Volume \ 2015
608 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL sua (tendencial) intangibilidade, que vem indissociavelmente ligada à natureza da função jurisdicional ( v. g. , Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 644/98, ou, na doutrina, Otero, Paulo, Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional , Lisboa, 1993, p. 50; Medeiros, Rui, A decisão de inconstitucionalidade, Lisboa, 1999, pp. 548 e segs.), ainda assim, não toleraria uma ordem jurídica que prescindisse do instituto de revisão de sentença (Veja-se sobre o assunto o que escreveu Alexandre, Isabel, “O caso julgado na jurisprudência constitucional portuguesa”, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa , Coimbra, 2003, pp. 61 e 62; bem como, v. g. , os Acórdãos do Tribunal Constitucional n. os 184/98, 644/98 e, em especial n.º 310/05). Sendo o caso julgado um valor constitucionalmente protegido, mas, também, aceite que a revisão de sentenças deve ser prevista em determinados casos – como efetivamente o é – a ponderação que importa fazer é a de saber se existirão circunstâncias em que, estabelecido tal recurso, o prazo fixado para o acionar, que garante a estabilidade do caso julgado, deve poder ser afastado. Ora, no balanceamento ou ponderação da garantia do caso julgado com os interesses em causa na norma em apreço, de natureza estritamente pessoal ou de personalidade, mais especificamente, relativos ao estabele- cimento da relação de paternidade (filiação), igualmente dotados de forte proteção constitucional, enquanto emanação do direito à identidade (e verdade) pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da CRP), a resposta, a nosso ver, não poderia deixar de ser afirmativa, desde logo se olharmos para o específico sentido da norma. Nos casos em que, como na norma em apreciação, está em causa a revisão de uma sentença que definiu a situação jurídica relativa à paternidade, determinada por mera prova testemunhal, quando atualmente testes científicos de ADN permitem fixar, com certeza, a verdade biológica, e, como aqui, nunca existiu tratamento como filho (o que não cabe ao Tribunal Constitucional questionar), a fixação de um limite temporal à pos- sibilidade de desencadear o meio de impugnação do caso julgado deve ceder, fazendo-se prevalecer o direito fundamental à identidade pessoal, traduzido no direito à verdade material relativa à paternidade. Como refere o acórdão recorrido, “aceitar, em termos absolutos, a limitação temporal dos cinco anos para a revisão das sentenças em que a paternidade haja sido declarada sem recurso a exames científicos, pode levar a situações melindrosas de existência de uma paternidade reconhecida no registo que se saiba não corresponder à verdade biológica por a mesma ter sido excluída por exames de sangue”. O próprio Tribunal Constitucional reconhecia, já em 2006, que “os exames biológicos conducentes à determinação da filiação, podem ser realizados fora dos processos judiciais”, sem limite temporal (Acórdão n.º 23/06). E no Acórdão n.º 310/05 o Tribunal deu conta da especificidade dos casos em que estivesse em causa o direito à identidade pessoal, quando relativos a relações de paternidade ou de filiação, para efeito da limitação temporal da pos- sibilidade de utilização do meio de impugnação do caso julgado, especificidade tida em conta nos Acórdãos n. os 209/04 e 200/09. A mesma especificidade salientou na doutrina Miguel Teixeira de Sousa ( Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª edição, Lisboa, 1996, p. 570), bem como Vladimir Brega Filho ( A relativização da coisa julgada nas ações de investigação de paternidade: http://seer.uenp.edu.br/index.php/argumenta/article/view/6 ). Também nós cremos que não deve ser inapelavelmente sujeito às consequências de uma decisão judicial que regulou a questão da paternidade, aquele que viu firmada a sua situação jurídica, com base em mera prova testemunhal, podendo, agora, nas atuais condições de desenvolvimento científico, ver esclarecida a verdade relativamente ao vínculo da paternidade, tanto mais que, nas circunstâncias da norma, aquele que foi juridicamente firmado como pai nunca tratou como filho aquele cuja paternidade quer (re)questionar, nem com ele se relacionou (o que nos liberta de outras ponderações). Entendemos que mesmo em nome da estabilidade do caso julgado – determinado, afinal, nos casos da norma, por eventual erro externo à decisão, que ao tempo não podia ser esclarecido com a fiabilidade cien- tífica atual dos testes de ADN – não deve este forçar a irrevisibilidade das situações em que está em causa o direito fundamental à identidade pessoal com os contornos definidos na norma em análise. Em suma, considerei que no concreto caso da norma em questão deve o caso julgado, firmado com base em prova testemunhal e sem recurso a exames biológicos, ceder perante a verdade da paternidade bio- lógica, que pode agora ser cientificamente estabelecida, e perante o interesse público, da correspondência com aquela, da paternidade jurídica, assim havendo defendido a inconstitucionalidade da norma contida no
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