TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 98.º volume \ 2017

105 acórdão n.º 33/17 Atendendo as estas condicionantes, e em particular à sua expressão neste processo, o Acórdão do Tribu- nal consubstancia, na minha opinião, um esforço de síntese e de equilíbrio a todos os títulos notável. 2. Apesar disso, não posso acompanhar o Tribunal no caminho que seguiu. Não o posso fazer porque a construção empreendida no Acórdão merece-me três reservas de princípio. Em primeiro lugar, é uma construção frágil. Está por demonstrar a base constitucional para afirmar a existência de um dever geral de cooperação cívica, de contornos vagos e inquietantes, e de um direito geral dos cidadãos a serem compensados pelos sacrifícios resultantes da prossecução do interesse público, com implicações abrangentes e imprevisíveis. Ainda que se admita que o princípio do Estado de direito democrá- tico possa comportar semelhantes corolários, o Tribunal não percorreu, no meu entender, o longo itinerário argumentativo necessário para estabelecer os seus fundamentos e delimitar o seu alcance. Nos termos em que são enunciados, não julgo que sejam muito mais do que petições de princípio. Em segundo lugar, é uma construção dispensável. Os argumentos constitucionais, como as explicações em geral, devem seguir uma ordem de precedência determinada pelo princípio da parcimónia. Entre várias construções possíveis, deve preferir-se, ceteris paribus, aquela que é mais simples, no sentido em que se baseia em parâmetros menos abstratos e implica cadeias de raciocínio menos sinuosas do que as demais que se per- filem em alternativa. Deste ponto de vista, o princípio do Estado de direito democrático – a par do princípio da dignidade da pessoa humana, seguramente o mais abstrato e complexo entre os princípios constitucionais – ocupa uma posição subsidiária na fundamentação de juízos de inconstitucionalidade. Por último, trata-se de uma construção artificial. Ao cindir a imposição legal de um dever de colabora- ção dos peritos – pretensamente fundado na Constituição – do regime de remuneração dessa colaboração imposta – uma pretensa forma de responsabilidade por facto lícito – o Tribunal desconsiderou a relação que se estabelece entre ambos. Na verdade, o dever de colaboração na administração da justiça implica uma ablação da liberdade dos peritos, designadamente a liberdade de não prestarem essa colaboração, e o regime remuneratório destina-se a limitar os danos causados por essa privação de liberdade, operando simultanea- mente como compensação do custo de oportunidade profissional do perito e como sucedâneo patrimonial da supressão da sua liberdade de escolha. Em suma, em causa está uma restrição da liberdade individual miti- gada nos seus efeitos por um regime remuneratório. A imposição legal do dever de colaboração (a medida restritiva) e o regime remuneratório (a medida mitigadora) constituem uma unidade funcional incindível, de modos que a insuficiência da remuneração implica, não a responsabilidade do Estado pelo facto lícito de impor a colaboração do perito, mas a inconstitucionalidade (e consequente ilicitude) da própria imposição do dever de colaboração nesses termos. 3. A questão com a qual o Tribunal foi confrontado é, como se vê, essencialmente um problema de restrição de direitos fundamentais. O próprio Tribunal reconhece-o implicitamente quando reconduz o prin- cípio da proporcionalidade no qual baseia o seu juízo de inconstitucionalidade não apenas ao princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º), mas ao princípio da proibição do excesso na restrição de direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 2). Sucede que a aplicação deste princípio, regulador da restrição de direitos, pressupõe a identificação de uma medida restritiva e de um direito atingido. Ora, o Acórdão não explica qual vem a ser tal direito ou de que modo ele é afetado. Ao estabelecer o dever dos peritos de colaborarem na administração da justiça, o legislador adota uma medida que visa a promoção de uma justiça de qualidade e, nessa medida, da tutela jurisdicional efetiva. Ao mesmo tempo, a imposição de tal dever implica uma restrição do direito ao livre desenvolvimento da perso- nalidade (artigo 26.º, n.º 1) dos peritos – da liberdade de estes decidirem se, quando, a quem, como e em que termos prestam os seus serviços – e ainda da liberdade de escolha de profissão (artigo 47.º, n.º 1). A restrição representa um sacrifício diretamente pessoal, a perda de liberdade de escolha em si mesma considerada, e indiretamente patrimonial, a eventual perda de rendimento resultante do exercício dessa liberdade. O regime remuneratório tem por finalidade compensar esse sacrifício e, nessa medida, mitigar o efeito restritivo da

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