TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 98.º volume \ 2017

149 acórdão n.º 40/17 58 – A autonomia local significa, também, que as autarquias locais são autodirigidas por órgãos próprios, democraticamente constituídos, que gozam de “liberdade de condução dos assuntos autárquicos (autodetermi- nação), na esfera de atribuições legalmente reconhecidas como suas, não podendo a lei conferir ao Governo (ou a outra autarquia) o poder de lhe dar ordens ou instruções nem prever um controlo de mérito dos seus atos”56. 59 – As autarquias locais prosseguem, portanto, interesses próprios das populações respetivas, que se definem por serem genéricos relativamente ao território, aos bens e à população de que cada uma é expressão e que a cole- tividade nacional não pode esvaziar, por efeito da lei. 60 – Esses princípios constitucionalmente consagrados, inter alia, nos artigos 235.º, n.º 2, e 237.º da Cons- tituição da República Portuguesa significam, com interesse para o presente pedido, que não pode ocorrer redução das atribuições das autarquias locais salvo em caso de manifesta necessidade e de acordo com critérios de propor- cionalidade, porquanto, a não ser assim, tal significaria violação da autonomia local adquirida e do princípio da descentralização da organização do Estado que tem expressão, no quadro autárquico, nas referidas normas da CRP. 61 – A proibição do arbítrio na redução legislativa das atribuições das autarquias locais é, mesmo, um traço definidor da filosofia descentralizadora da CRP, tanto mais relevante na análise da constitucionalidade das leis que definem em cada momento o seu alcance rigoroso quanto é certo que a Constituição deixou para a lei ordinária tal definição concreta. Com efeito, os “interesses próprios prosseguidos pelas autarquias locais só adquirem relevância jurídica habilitante do seu agir se existir lei que, transformando tais interesses em atribuições autárquicas, defina uma norma de competência” 57 . Justamente porque é a lei ordinária que, em cada momento, define concretamente as atribuições e competências das autarquias locais, bem se compreenderá que, em nome da subordinação da lei à Constituição, deva aquela ser fiscalizada à luz da proibição arbitrária da redução do escopo de atuação das autar- quias locais, o que não significa, em nenhuma circunstância, e como alguns já defenderam, uma violação do prin- cípio da liberdade conformadora do legislador ordinário, a quem estaria vedado alterar o “ status quo” decorrente de lei anterior que tivesse definido um certo quadro de atribuições e competências das autarquias locais. 62 – É assim forçoso concluir que teria sido efetivamente possível que a Assembleia da República legislasse no sentido de eliminar ou alterar a atribuição das autarquias locais em matéria de transporte público local de passagei- ros que decorre da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro mas, para o fazer no respeito da Constituição teria de, no processo legislativo, identificar as razões de necessidade que justificavam tal opção e adotar regras que, alterando atribuição antes conferida por lei, o fizessem de forma proporcionada. 63 – Ora, nem na “exposição de motivos” que acompanhou a Proposta de Lei n.º 287/XII, nem no decurso dos debates em Plenário e na Comissão de Economia e Obras Públicas da Assembleia da República se encontra a mais remota referência a tais razões ou a indicação da proporcionalidade definidora do novo regime. 64 – Pelo contrário, fruto da confusão conceptual que já se assinalou acima, o Governo justificou a alteração do regime decorrente da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, com base na ideia de que, sendo o Estado o concedente numa série de contratos vigentes em 2013, era, por consequência, já nesse tempo, “autoridade de transportes”. Como escreveu na “exposição de motivos”, “Nestas situações [aquelas e quem o Estado é acionista dos concessio- nários de transportes e concedente dos contratos com estes firmados] é, portanto, o Estado, e não os municípios, quem atualmente assume o papel de autoridade de transportes”, isto é, no dizer da Proposta de Lei, a “autoridade pública com atribuições e competências em matéria de organização, exploração, atribuição, investimento, financia- mento e fiscalização do serviço público de transporte de passageiros, bem como de determinação de obrigações de serviço público e de tarifários numa determinada zona geográfica de nível local, regional ou nacional, ou qualquer entidade pública por aquela investido dessas atribuições e competências” 59 . 65 – É fácil reconhecer que esta justificação não releva de qualquer ideia de “necessidade” na alteração das atribuições autárquicas decorrente da lei de 2013. Ao invés, interpretam-se de forma que não tem apoio no quadro legal vigente à data da sua apresentação à Assembleia da República os efeitos da pré-existência de certas relações contratuais concessórias, atribuindo-lhes um efeito derrogatório do regime legal – que manifestamente não têm nem poderiam ter –, para, com base nessa derrogação, justificar o que, assim interpretado, seria afinal uma mera manutenção do regime já existente, sujeita a um termo final, verificado na cessação da vigência de tais relações

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