TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 98.º volume \ 2017

206 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL No Acórdão n.º 273/16, que julgou “inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 38.º do RDPSP, na parte em que determina a suspensão de funções e a perda de um sexto do vencimento base por efeito do des- pacho de pronúncia em processo penal por infração a que corresponda pena de prisão superior a três anos”, considerou-se que a aplicabilidade do “princípio da presunção de inocência” não sofria quaisquer dúvidas no caso por tal suspensão revestir caráter essencialmente disciplinar e, “enquanto direito sancionatório, o direito disciplinar recebe[r] o essencial da garantia individual de respeito pelos direitos de defesa e de audiência, entre os quais se encontra o princípio da presunção de inocência, verdadeiro requisito constitutivo do Estado de direito democrático, como decorre dos n. os 2 e 10 da Constituição (...)”. Tal como a maioria, considero que a suspensão de funções prevista no artigo 38.º, n.º 1, do RDPSP, não reveste caráter disciplinar, razão pela qual não pode ser contestada, no plano da sua validade constitucional, por apelo ao princípio da presunção da inocência, na dimensão interna ou intraprocessual a que, caso se tratasse de uma verdadeira medida sancionatória, se encontraria forçosamente sujeita. Todavia, entendo também que, para além dessa dimensão interna ou intraprocessual – a única cujo afastamento pode bastar-se com a negação do caráter disciplinar da suspensão de funções prevista no artigo 38.º, n.º 1, do RDPSP –, o princípio da presunção de inocência de que beneficia todo o arguido em processo penal tem uma dimensão externa ou extraprocessual, impeditiva prima facie de que à pendência de um pro- cedimento criminal − ou à circunstância de nele se ter atingido determinada fase ou estádio de progressão −, possam ser automaticamente associados certos efeitos ou consequências que não teriam de outro modo lugar (neste sentido, incluindo nas decorrências do princípio da presunção de inocência a “proibição de efeitos automáticos da instauração do procedimento criminal”, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra, 2007, p. 518). Ora, é essa dimensão externa ou extraprocessual do princípio da presunção de inocência que, a meu ver, o Acórdão desconsidera, fazendo-o em termos que não apenas obscurecem a verdadeira incidência pro- blemática da solução fiscalizada, como impedem a correta caracterização do tipo de restrição produzido pela norma que a estabelece. Conforme notado na doutrina, o princípio da presunção de inocência constitui, essencialmente, uma regra ou um critério de tratamento a dispensar ao arguido ao longo do processo (cfr. Alexandra Vilela, Considerações acerca da Presunção de Inocência em Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 2000, p. 91 e segs.) – dentro e fora dele (cfr. Rui Patrício, O Principio da Presunção de Inocência do Arguido na Fase do Julgamento no atual Processo Penal Português, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2000, p. 38) −, cujo efeito é o de impor que o mesmo seja titular de um estatuto e destinatário de uma consideração próprios de alguém que é considerado inocente (cfr. Maria João Antunes e Joana Fernandes Costa, “Comentário à Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em Tribunal em processo penal”, in A Agenda da União Europeia sobre os Direitos e Garantias da Defesa em Processo Penal: a “segunda vaga” e o seu previsível impacto sobre o direito português, editada on-line pelo Instituto Jurídico Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra ( http://ij.fd.uc.pt/publicacoes/comentarios/ebook_1_comentarios.pdf ). Nesta sua dimensão extraprocessual, o princípio da presunção de inocência manifesta-se, assim, antes do mais, como o direito a beneficiar, fora do processo, de um “tratamento não discriminatório não só por parte das autoridades judiciais, como por parte de quaisquer outras entidades, públicas ou privadas” (cfr. Eduardo Maia Costa, “A presunção de inocência do arguido na fase de inquérito”, in Revista do Ministério Público, 23 (2002), n.º 92, p. 77). É com base, pois, em tal ordem de considerações que, diversamente do que se depreende ser a orienta- ção sufragada pela maioria, entendo que o princípio da presunção de inocência, tomado nesta sua dimensão externa ou extraprocessual, é, não só plenamente invocável no caso, como efetivamente afetado pela norma que determina a suspensão automática de funções do agente da Polícia de Segurança Pública pelo facto de ter sido pronunciado pela prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos.

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