TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 98.º volume \ 2017

423 acórdão n.º 171/17 valor fundamental da segurança jurídica num Estado de direito democrático. Pelo contrário, uma regra de proibição da retroatividade da lei fiscal protege de forma excessiva, como é da natureza das regras, o valor da segurança jurídica que lhe subjaz – impede a retroatividade fiscal até mesmo onde ela, tudo visto e ponde­ rado, se justificaria. Ora, parece absurdo interpretar o texto constitucional no sentido de que, por razões de segurança jurídica, a ordem constitucional salvaguarda de forma excessiva o interesse dos cidadãos na segu­ rança jurídica da sua vida tributária. É evidente que o valor da segurança jurídica não pode ser fundamento da tutela da segurança jurídica aí onde ela não mais se justifica. O único caminho para evitar semelhante conclusão – obviamente insustentável –, passa pela noção de que, através da consagração de uma regra de proibição da retroatividade em matéria fiscal, se procurou cor­ rigir a tendência jurisprudencial anterior à revisão de 1997 no sentido de uma tutela deficitária da segurança jurídica neste domínio. Dir-se-á que entre o risco de dois excessos – o excesso de liberalidade da jurisdição constitucional em relação a leis fiscais retroativas e o excesso de restrição inerente a uma regra constitucional de proibição neste domínio –, o legislador de revisão preferiu o segundo. É muito duvidoso que este argumento, tão dependente de presunções sobre a intenção histórica do legislador de revisão e de pressupostos sobre a sua legitimidade política reforçada, possa ultrapassar as críticas a essas noções desenvolvidas no ponto anterior. Mas, ainda que tal seja o caso, cumpre notar que a sua pro­ cedência depende da correção da premissa segundo a qual a proibição da retroatividade fiscal através de uma regra reforça a segurança jurídica dos contribuintes, nomeadamente quando comparada com um princípio – «de natureza necessariamente fluida», como se afirma no Acórdão n.º 128/09 –, com o mesmo conteúdo. Ora, há duas boas razões para reputar tal premissa de falsa. Em primeiro lugar, o conceito de retroatividade da lei fiscal, na base do qual a suposta regra teria sido construída, está longe de ser isento de obscuridades. Que assim é demonstra-o o facto de o Tribunal Consti­ tucional, na delimitação desse conceito, ter recorrido a distinções de filigrana jurídica, como sejam a distin­ ção fundamental entre «retroatividade autêntica» e «retroatividade inautêntica», e as distinções subsidiárias entre «factos tributários instantâneos» e «factos tributários de formação continuada», «impostos periódicos» e «impostos de obrigação única», e «tributação do rendimento» e «tributação autónoma». Ora, não só se dá o caso de estas distinções serem tudo menos evidentes e previsíveis para os contri­ buintes cuja segurança está em causa, como também se verifica que, ao acolhê-las, se frustrou largamente o desiderato de cindir a proibição da retroatividade fiscal do princípio geral da proteção da confiança. Com efeito, não só a distinção entre retroatividade autêntica e inautêntica atira todos os casos de legislação tri­ butária subsumível neste último conceito para o âmbito de aplicação do princípio da proteção da confiança – restringindo de forma expressiva o alcance da proibição da retroatividade fiscal em sentido estrito –, como o único critério para essa distinção é a ideia de que, ceteris paribus, os casos de retroatividade autêntica con­ substanciam as ofensas mais graves ao princípio da proteção da confiança. Significa isto que na delimitação de um conceito complexo – retroatividade fiscal –, o Tribunal tem-se socorrido, ainda que implicitamente, dos métodos de concretização da Constituição que a suposta consagração de uma regra neste domínio se destinava justamente a excluir. Em segundo lugar, ao delimitar o âmbito de aplicação do n.º 3 do artigo 103.º a partir da distinção entre retroatividade autêntica e inautêntica, a jurisprudência constitucional que temos vindo a considerar permite que medidas tributárias de efeito equivalente e com idêntica onerosidade para o contribuinte sejam julgadas à luz da regra da proibição da retroatividade fiscal (tendencialmente absoluta) ou do princípio da proteção da confiança (sob reserva de ponderação), consoante a forma jurídica livremente eleita pelo legis­ lador para as consagrar. O regime da tributação autónoma no CIRC é disso mesmo um exemplo eloquente. Tivesse o legisla­ dor optado por onerar os encargos com despesas de representação e os relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, motos ou motociclos, não através de tributos autónomos, mas através da redução da sua dedutibilidade na determinação da matéria coletável para efeitos de liquidação do IRC, o agravamento

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