TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 98.º volume \ 2017

424 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL fiscal incidiria sobre um facto tributário em formação, pelo que não lhe seria aplicável o artigo 103.º, n.º 3, da Constituição. Sucede que não faz sentido interpretar a Constituição como estabelecendo uma garantia absoluta dos contribuintes contra a retroatividade da lei fiscal, se o conceito de retroatividade é definido em termos tais que a proibição constitucional pode ser, com maior ou menor engenho, contornada pelo legisla­ dor. Para além de estabelecer a possibilidade de tratamento desigual dos cidadãos neste domínio – sujeitos a encargos fiscais materialmente idênticos, mas com níveis de proteção constitucional diversos –, semelhante entendimento tem um efeito corrosivo sobre a segurança jurídica que se procura salvaguardar através de uma regra de proibição da retroatividade fiscal. 16. Os argumentos anteriores estabelecem que a interpretação do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, segundo a qual este consagra uma proibição tendencialmente absoluta da retroatividade em matéria fiscal, não encontra apoio algum nas virtudes geralmente atribuídas às regras. Na verdade, a afirmação de um prin­ cípio de proibição da retroatividade fiscal, tributário do princípio da proteção da confiança, não representa qualquer sacrifício de legitimidade política ou de segurança jurídica. Cumpre agora salientar as vantagens associadas a essa interpretação alternativa do texto constitucional. É virtude dos princípios – já o referimos – serem equitativos, no sentido de que se aplicam apenas nos casos que têm ressonância com os valores ou fins que traduzem. No domínio fiscal, tal significa que as leis retroativas que agravam os encargos dos contribuintes são censuráveis apenas na medida em que a confiança dos cidadãos na estabilidade do regime tributário seja legítima. Ora, nem todos os casos de retroatividade fiscal, nem mesmo os de retroatividade dita autêntica, são dessa natureza. As alterações à lei fiscal ditadas pela necessidade de debelar ambiguidades ou preencher lacunas no regime, comprovadamente exploradas de forma deliberada e sistemática por alguns contribuintes para evitarem as suas responsabilidades contribu­ tivas, não ofendem o princípio da proteção da confiança, ainda que produzam efeitos desde um momento anterior à sua entrada em vigor. Assim é porque, nesses casos, a eventual confiança depositada pelos contri­ buintes no quadro legal vigente no momento em que planearam a sua vida económica (em sentido amplo) não é digna de tutela jurídica. De facto, só a confiança daqueles que atuam de boa fé é um interesse legítimo – he who comes into equity must come with clean hands . É isso mesmo que, a partir do Acórdão n.º 287/90, afirma toda a jurisprudência constitucional em matéria de proteção da confiança, nomeadamente no domínio da retroatividade dita inau­ têntica da lei fiscal (vide os Acórdãos n. os 128/09, 399/10, 607/13 e 42/14). Segundo as fórmulas reiteradas do Tribunal: «a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar» (Acórdão n.º 287/90) e «devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões» (Acórdão n.º 128/09). Em suma, a frustração das expectativas só é um sacrifício atendível na medida em que aquelas sejam razoáveis. Para além de equitativos, como se referiu, os princípios são proporcionais. As expectativas razoáveis dos contribuintes na estabilidade do regime fiscal vigente no momento em que planeiam a sua vida económica devem ser salvaguardadas na proporção do seu valor relativo. Tal implica a necessidade de graduar a ofensa que o agravamento fiscal retroativo representa para a confiança legítima dos contribuintes e ponderar esse sacrifício com o peso concreto dos valores associados à modificação do quadro legal. Como vimos, ao distinguir os casos de retroatividade autêntica e inautêntica, e deles retirar diferentes consequências jurídicas, a jurisprudência constitucional no domínio da retroatividade fiscal acolhe – se bem que apenas de forma implícita – noções baseadas na graduação e ponderação dos valores relevantes. Sucede que tais critérios de decisão, para além de não se basearem em argumentos articulados, no que revelam um défice de transparência deliberativa, são muito imperfeitos. Por um lado, ao fazer depender integralmente da distinção entre retroatividade autêntica e inautêntica o nível de proteção constitucional contra impostos retroativos, o Tribunal não só valoriza apenas uma das

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