TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 98.º volume \ 2017

541 acórdão n.º 32/17 por isso respeito a um momento em que a extensão do conceito e o âmbito de aplicação do regime coinci­ diam rigorosamente. É evidente que a forma mais indicada para modificar o quadro legal preexistente, no sentido de subtrair ao âmbito de aplicação do EGP os destinatários do atual n.º 2 do artigo 1.º, não passaria por repensar e reformular o conceito legal de gestor público. Bastaria introduzir uma cláusula de exceção. Foi justamente essa a opção seguida pelo legislador. Para além de essa ser a solução mais indicada, dificilmente a lei poderia acolher solução diversa. Não parece viável recortar uma noção de gestor público que denote todos os indivíduos designados para órgão de gestão ou administração de empresas públicas, com exclusão daqueles a que se refere o atual n.º 2 do artigo 1.º do EGP. Tal conceito teria de ser: por um lado, suficientemente abstrato para abranger todos os indivíduos atualmente sujeitos ao EGP, na sua grande diversidade; por outro lado, não tão abstrato e extenso que nele pudessem caber os indivíduos a que se destina o atual n.º 2 do artigo 1.º Só que não se vê facil­ mente como semelhante conceito seria logicamente possível. Dada a especificidade das características dos indivíduos abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 39/2016 – especificidade essa, importa salientá-lo, que se prende com as razões excecionais expostas no preâmbulo desse diploma – a única forma de os subtrair ao âmbito de aplicação do EGP seria através da introdução de uma cláusula de exceção – o que é dizer: de um pressuposto negativo – na norma que determina esse âmbito de aplicação. O conteúdo dessa norma poderia ser expresso através da seguinte perífrase: o EGP aplica-se a todos os gestores públicos, entendendo-se por estes quem seja designado para órgão de gestão ou administração de empresas públicas, com a exceção daqueles gestores públicos que sejam designados para órgão de administração de instituições de crédito integradas no setor empresarial do Estado e qualificadas como ‘entidades supervisionadas significativas’, na aceção do ponto 16) do artigo 2.º do Regulamento (UE) n.º 468/2014, do Banco Central Europeu, de 16 de abril de 2014. Conclui-se, pois, que os notificados são gestores públicos nos termos do EGP em vigor. Mas gestores públicos que o legislador de 2016 quis colocar fora do alcance do EGP. Dois enunciados que, pelas razões que ficam expostas, não são contraditórios entre si. 10. Mas ainda que se admitisse que o Decreto-Lei n.º 39/2016 alterou o conceito de gestor público no EGP, no sentido de excluir de tal conceito os destinatários do atual n.º 2 do artigo 1.º desse diploma, tal alte­ ração não se repercutiria necessariamente na definição do que seja gestor público para efeitos da Lei n.º 4/83. Não estamos aqui perante uma remissão pura e simples, que permita ao intérprete abstrair do contexto nor­ mativo em que o conceito a preencher está inserido, e que é o da Lei n.º 4/83 e não o do EGP. Afinal, cada um dos diplomas está ordenado à prossecução das respetivas finalidades. Na verdade, a circunstância de o conceito de gestor público figurar como momento de comunicabilidade entre os dois diplomas – Estatuto do Gestor Público e Lei do Controle Público da Riqueza dos Titulares de Cargos Políticos – não significa necessariamente que ele tenha de valer exatamente com o mesmo sentido e alcance nos respetivos regimes. Menos ainda significa que as vicissitudes sofridas pelo conceito num ou noutro dos diplomas tenham que se refletir necessária e rigorosamente no outro. Estão em causa diplomas diferentes, animados por intencionali­ dades político-legislativas específicas, portadoras de axiologias e teleologias distintas. E, como tais, suscetíveis de impor sentidos não rigorosamente sobreponíveis a conceitos que correm ( sub eodem nomine ) nos dois diplomas legais. Isto à vista do axioma hermenêutico segundo o qual há uma incindível relação de «code­ terminação dialética» (Castanheira Neves) entre as leis e as palavras que as integram. No sentido de que são as palavras que fazem as leis – afinal as leis são ditas através de palavras – mas também são as leis que fazem as “suas” palavras. Nada, por isso, mais natural do que a eventualidade de as mesmas palavras significarem coisas diferentes em leis diferentes. Tendo em conta esta autonomia valorativa, podemos dar como assente que a referência, pela Lei do Controle Público da Riqueza dos Titulares de Cargos Políticos, ao conceito de gestor público nada tem que ver com a sujeição dos indivíduos abrangidos por esse conceito ao EGP e aos direitos e deveres nele previstos – o que é, além do mais, demonstrado pelo sentido das revisões a que o regime constante daquele primeiro diploma foi sendo sucessivamente sujeito.

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