TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 98.º volume \ 2017

64 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL nem assim a inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 3, do Decreto seria afastada, porquanto a atribuição à mesma Assembleia Legislativa de uma tal competência com base no artigo 5.º, n.º 8, da Lei n.º 19/2003, na redação dada pela Lei n.º 4/2017, coloca diversos problemas de constitucionalidade, que são prévios e põem em causa a aplicabilidade do mesmo por este Tribunal. Na verdade, a defesa da não inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 3, do Decreto por parte da ALRAM pressupõe a aplicabilidade de uma lei estadual – a Lei n.º 4/2017 – que lhe confere, enquanto assembleia legislativa de região autónoma, competência para fixar a quantia em dinheiro a atribuir aos partidos nela representados. Deste modo, ficaria afastada a objeção que esteve na base do juízo positivo de inconstituciona- lidade do Acórdão n.º 26/09. Todavia, e porque iura novit curia, existindo problemas de constitucionalidade com o pressuposto normativo da validade constitucional daquela norma do Decreto, não pode este Tribunal deixar de os apreciar, em ordem a determinar se, afinal, o artigo 8.º, n.º 3, do Decreto satisfaz todas as exi- gências constitucionais. Ponto é que o possa fazer. 18. Prima facie , a circunstância de se tratar de uma questão de direito colocada num feito submetido ao julgamento do Tribunal aponta no sentido da admissibilidade desse conhecimento incidental, desconsi- derando a norma em causa, com base diretamente no artigo 204.º da Constituição ou em razões análogas às que justificam tal preceito. Mas, em sentido inverso, poderá objetar-se com a diferença do tipo de fiscalização em causa – aqui, fiscalização abstrata; no artigo 204.º, fiscalização concreta – e, bem assim, com o princípio do pedido, tal como consagrado no artigo 51.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional. Em primeiro lugar, cumpre ter presente que o artigo 204.º da Constituição, apesar de se encontrar na base do sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade, não preclude o genérico poder dos tribu- nais de interpretarem e aplicarem a lei em vista da específica missão que constitucionalmente lhes compete: «administrar a justiça em nome do povo» (artigo 202.º da Constituição). Para o fazerem, e uma vez que os tribunais «apenas estão sujeitos à lei» (artigo 203.º da Constituição), não podem deixar de resolver todas as questões jurídicas quanto à determinação do direito a aplicar nas suas decisões ( iura novit curia ). Assim, atenta a unidade de uma ordem jurídica que tem o seu fundamento último na Constituição (artigo 3.º, n.º 3), devem os tribunais observar sempre a “legalidade” – ou porventura mais exatamente, a cadeia de legitimidade – do direito, desaplicando as normas que reputem ilegais. É o que sucede com a desaplicação de regulamentos ou leis ilegais. Nesse sentido, pode entender-se com Gomes Canotilho e Vital Moreira: «IV. Os tribunais apenas estão sujeitos à lei. A “lei” designa aqui obviamente não apenas as leis em si mesmas (art. 112.º-1) mas também todas as demais normas que constituem a ordem jurídica, a começar, naturalmente, pela Constituição que é a lei fundamental da República. Quando exista discrepância entre normas de hierarquia diferente ou quando exista qualquer relação de pre- cedência ou preferência normativa decorrente da Constituição ou (se for caso disso) da lei, então os tribunais devem desaplicar a norma subordinada (norma inconstitucional, norma regulamentar ilegal, etc), Tal como o tribunal deve em cada caso aferir da conformidade constitucional das normas aplicáveis (art. 204.º), deve igualmente verificar a sua conformidade com todas as normas a que elas devem sujeitar-se (normas interna- cionais, europeias, legais, etc). É óbvio que sendo o Estado constitucional informado pelo princípio do Estado de direito, a subordinação à lei significa subordinação a normas legítimas, isto é, normas materialmente válidas: jurisdição significa “dizer o direito”, não o “não direito”. Por outro lado, o princípio do Estado de direito implica a sujeição aos princí- pios jurídico-materiais inerentes ao estado democrático-constitucional. [(…)] IX. A recusa de aplicação judicial de normas inconstitucionais não é mais do que a concretização do princípio geral de que os tribunais não devem aplicar normas inválidas por motivo de desconformidade com normas de grau superior ou perante as quais devam ceder. Na mesma ordem de ideias, os tribunais não devem aplicar normas que infrinjam as normas de direito internacional ou normas da União Europeia que devam respeitar,

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