TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 103.º volume \ 2018

136 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL L. Na verdade, a variedade de interesses e bens jurídicos tutelados por infracções contraordenacionais previstas no Direito Português e a amplitude das coimas e sanções acessórias abstractamente aplicáveis impõem uma interpretação dinâmica dos respectivos regimes no quadro constitucional vigente. M. É por isso que, à medida que a relevância ético-social entre ilícitos contraordenacionais e crimes se esbate e que a gravidade das sanções aplicáveis em ambos os ramos se aproxima – ou mesmo se inverte –, o Direito Con- traordenacional, que mantém sempre uma natureza sancionatória, afasta-se do seu referencial administrativo e aproxima-se do Direito Penal em sentido global. N. É, por isso, necessário distinguir entre um Direito das Contraordenações tradicional e o Direito das “Grandes” Contraordenações, marcado por uma maior proximidade ao Direito Penal Económico-Financeiro, como é o caso do Direito das Contraordenações da Concorrência. O. Esta aproximação ôntica da relevância dos bens jurídicos tutelados e das consequências sancionatórias das infracções contraordenacionais e penais – bem como o correspondente afastamento das contraordenações “modernas” das ditas “tradicionais” – têm necessariamente de se reflectir no plano jurídico. P. E esse reflexo não pode deixar de ocorrer por via da aproximação das garantias do processo contraordenacional às do processo penal. Q. Desde logo porque é artificial sustentar que a coima aplicada não contém qualquer juízo de censura ético- -jurídica, nem contém um sentido de retribuição ou expiação ética. A coima – esta coima –, tem esta dimensão precisamente pela ressonância ética do comportamento imputado, sendo a sua aplicação, ainda que formal- mente direccionada a finalidades de pura prevenção geral, indissociável de uma finalidade também repressiva. R. Será, portanto, dentro da lógica de um Direito de Grandes Contraordenações, mais próximo do Direito Penal e, por isso, merecedor de garantias adequadas à sua natureza, que a ponderação do grau de lesão da restrição a direitos fundamentais deverá ser analisada e contrabalançada com os interesses a salvaguardar. S. O primeiro ponto onde esta diferença se deve reflectir é precisamente na análise da norma em crise à luz do princípio da presunção da inocência vigente no Direito Penal e, claro, no Direito das (Grandes) Contraorde- nações. T. Deste princípio decorre a proibição da inversão do ónus da prova em desfavor do arguido, bem como a proi- bição da realização de consequências jurídicas sancionatórias antes do trânsito em julgado da decisão. U. Assim sucede no plano criminal mas também, por força do que acima se disse, no Direito das Contraordena- ções da Concorrência, desde logo por força da sua evidente identidade estrutural. V. Logo, a opção do legislador por um regime sancionatório contraordenacional não pode servir de pretexto para uma degradação das garantias dos Arguidos quando tal regime prevê consequências mais gravosas do que aque- las que resultariam da responsabilidade penal. W. O que, por sua vez, leva a concluir que o tipo de censura dirigido ao agente de uma contraordenação da Con- corrência está substancialmente próximo do juízo de censura ao agente de um crime económico-financeiro, servindo igualmente para tutelar bens jurídicos que não de mera admonição. X. Daí que a sua execução imediata comporte já um significado idêntico ao da execução antecipada de uma sanção criminal por factos não transitados em julgado. Y. Isso mesmo foi já reconhecido nos dois outros países europeus que têm um Direito Contraordenacional de matriz penal: a Alemanha e a Áustria. Z. De facto, no regime alemão, no qual o legislador português declaradamente se inspirou para criar a figura das constraordenações, a única solução possível no que concerne a coimas em matéria de concorrência é precisa- mente a do efeito suspensivo até ao trânsito em julgado da respectiva decisão de aplicação. AA. O mesmo sucede com o regime austríaco, no qual o legislador foi inclusivamente mais longe, proibindo tam- bém a aplicação direta de coimas pela Autoridade da Concorrência, sem decisão judicial prévia, conferindo efeito suspensivo às coimas até ao trânsito em jugado e proibindo a reformatio in pejus . BB. O motivo é evidente: sendo modelos de Direito Contraordenacional de matriz penal, em especial num con- texto de “grandes” contraordenações, a única solução constitucionalmente admissível tem de passar pela atri- buição de garantias adequadas à natureza dos ilícitos.

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=