TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 103.º volume \ 2018

137 acórdão n.º 445/18 CC. O legislador português, por seu turno, não só previu a reformatio in pejus também como medida dissuasora de eventuais recursos inúteis, como previu o efeito meramente devolutivo da impugnação, conferindo executorie- dade imediata ao que constitui uma mera acusação de acordo com o artigo 62.º, n.º 1, do RGCO (aplicável ex vi artigo 13.º, n.º 1, da Lei da Concorrência). DD. E fê-lo sem qualquer válvula de escape que não a demonstração da eventual verificação de um prejuízo conside- rável com a execução imediata da coima, caso em que sempre terá o visado de pagar por outra forma, prestando caução. EE. O regime português é, por isso, cego quanto à concreta necessidade de efeito devolutivo da decisão condenatória no caso, deixando margem (de resto, fictícia) ao julgador apenas para impor o pagamento de uma caução ao visado, caso este demonstre um prejuízo considerável na execução antecipada da coima. FF. Ora, a eventual verificação de um prejuízo considerável não é fundamento válido para uma maior ou menor compressão do princípio da presunção de inocência. Isto porque o princípio é igualmente válido para todos os presumíveis inocentes, independentemente do prejuízo que a sanção lhes provoque. GG. O ponto está na circunstância de a solução legal, ao invés de presumir a parcialidade da entidade que investiga e decide, presumir a culpa daquele que se defende perante ela num processo sem “freios e contrapesos”. HH. Por tudo quando se referiu, ao restringir desproporcionalmente a presunção da inocência, impondo um regime de impugnação ao qual apenas excepcionalmente se atribui efeito suspensivo, sem que o julgador possa decidir quais os casos em que tal efeito se justifica, a norma viola de forma grosseira e intolerável o princípio da presun- ção de inocência, previsto no artigo 32.º, n.º 2, em conjugação com o disposto nos artigos 32.º, n.º 10, 18.º, n.º 2 e 2.º, todos da CRP. Por outro lado, II. Como bem assinalou o Tribunal a quo, a norma viola ainda o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdi- cional efetiva. Senão veja-se: JJ. A impugnação de decisões condenatórias da Autoridade da Concorrência não é, em rigor, um recurso, mas um exercício do direito de acção, cujo conteúdo essencial pressupõe a possibilidade de evitar os efeitos da decisão impugnada. KK. Ora, no processo contraordenacional o direito de acção tem uma relevância qualificada, pois a fase administra- tiva deste é uma fase inquisitória em que a entidade que investiga é a mesma entidade que julga. LL. Assim, considerando que o carácter inquisitório desta fase do processo representa um desvio à matriz acusatória que caracteriza os processos sancionatórios no Direito português, impõe-se a criação de um mecanismo que contrabalance a imparcialidade promovida por aquele regime com uma ampla margem para a impugnação judicial de decisões condenatórias. MM. Aliás, muito em especial neste concreto domínio, quaisquer obstáculos levantados nesse primeiro acesso a um julgador imparcial devem estar rodeados de especiais cautelas e devem ser fundados em motivos atendíveis, comprovados e preponderantes, não podendo, em qualquer caso, tais obstáculos esvaziar o conteúdo essencial desse direito (artigo 18.º, n.º 3, CRP). NN. Não é isso que sucede. OO. O regime do efeito suspensivo da impugnação judicial apenas permite ao Arguido escolher entre pagar a coima ou prestar caução equivalente. PP. Estamos, portanto, perante um regime incapaz de atender às circunstâncias do caso concreto, contrariamente ao que sucede com qualquer um dos exemplos avançados pelo Ministério Público ou pela Autoridade da Concorrência como análogos, muito em particular quanto ao regime de impugnação de decisões da Comissão Europeia. Portanto, QQ. Não obstante o legislador goze de uma ampla margem de conformação do sistema de acesso à justiça, este poder de conformação não está, evidentemente, isento do cumprimento de exigências constitucionais, em especial das exigências impostas pelo princípio da proporcionalidade.

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