TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 103.º volume \ 2018
235 acórdão n.º 486/18 A proibição da discriminação aplica-se não só na relação deficiente/não deficiente, mas também na relação deficiente/deficiente, impondo que também não se registem diferenças de tratamento arbitrárias ou destituídas de fundamento racional entre os deficientes (vide, neste sentido, António Araújo, em Cidadãos portadores de deficiên cia – o seu lugar na Constituição da República , p. 111, da edição de 2001, da Almedina). Segundo a norma sob fiscalização, as pessoas que tenham sido interditas por sentença judicial estão absoluta- mente impedidas de prestar declarações, na qualidade de ofendidos constituídos assistentes, em audiência de julga- mento em processo penal, relatando a sua versão sobre o modo como ocorreram os factos que integram o objecto do processo, sujeita à livre apreciação do julgador. Cria-se, assim, um estereótipo associado ao interdito por anomalia psíquica, fazendo decorrer da sua situação uma espécie de presunção inilidível de incapacidade para relatar os factos de que tenha sido vítima. Esta proibição traduz-se num tratamento desigual, não só relativamente aos cidadãos que não sofrem de qual- quer anomalia psíquica, mas também, em comparação com aqueles que, sofrendo dessa deficiência, não se encon- tram interditos, por sentença judicial, os quais, na qualidade de ofendidos que se constituíram assistentes em processo penal, têm direito a relatar a sua versão dos factos em julgamento, sujeita à livre valoração do julgador. E esta diferença de tratamento não resulta duma incapacidade efetiva dos interditos prestarem depoimento. Como acima se explicou, a declaração de interdição pressupõe apenas uma constatação judicial da incapacidade do interdito governar a sua pessoa e os seus bens, devido a uma anomalia psíquica, reportando-se esse juízo sobre- tudo a uma incapacidade daquele actuar com autonomia no mundo dos negócios jurídicos. Ora, a (in)capacidade para relatar determinada realidade com a qual se contactou, não só é frequentemente casuística, dependendo de múltiplos factores como a sua complexidade, o tipo e as circunstâncias do contacto ou o tempo entretanto decorrido, sendo, no mínimo, problemática a emissão de um juízo genérico de incapacidade para testemunhar, como, sobretudo, o juízo que presidiu à prolacção de uma sentença de interdição é inaproveitável para se determinar a aptidão do interdito para prestar um depoimento credível em processo penal. Estamos perante um domínio das capacidades humanas que não assume qualquer relevância nos pressupostos da declaração de interdição, pelo que esta pouco ou nada revelará sobre a capacidade do interdito depor em tribunal. Como escreveu Luís Osório, pouco depois da aprovação do CPP de 1929: “O nosso Código inabilita os dementes que forem interditos. Esta limitação da nossa lei não se funda no facto de a interdição fazer supor, em via geral, a falta de qua- lidades necessárias para depor. Se o legislador assim a tivesse fundamentado teria caído num erro grosseiro, pois a falta de qualidades necessárias para a regência da pessoa e bens não importa necessariamente a falta de capacidade para depor. O motivo da limitação está na facilidade de prova da demência; só este motivo pode, até certo ponto, justificar a regra. Se bem que a consequência natural de tudo quanto vem sendo dito seria o desaparecimento desta causa de interdição de depor. O juiz analisaria em cada caso o valor do depoimento da testemunha, visto que nem a demência, nem a interdição são índices seguros de que o depoimento do demente não tenha valor algum.” (na ob. e loc. cit. ). O simples benefício da maior certeza sobre qual o universo de pessoas consideradas incapazes de prestarem declarações em processo penal, devido a sofrerem de anomalia psíquica, que pode ser invocado em favor desta solução, revela-se manifestamente desproporcionado como justificação para a adopção pelo legislador ordinário de um critério que discrimina os deficientes, por anomalia psíquica, interditos, dos demais cidadãos, incluindo as pessoas que sofrendo também de anomalia psíquica não se encontrem interditos. As razões para as discriminações admissíveis neste domínio devem residir numa incapacidade efetiva para o exercício concreto dos direitos em causa, e não numa incapacidade ficcionada a partir de um julgamento que apura da capacidade geral da pessoa para reger a sua pessoa e os seus bens, com a finalidade de facilitar uma definição de quem tem capacidade para depor. Daí que tratar toda e qualquer pessoa que esteja interdita por anomalia psíquica como sendo inábil para depor em audiência de julgamento seja discriminá-la, sem fundamento bastante, dos demais cidadãos, pelo que esse tratamento viola o princípio constitucional da igualdade.»
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