TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 103.º volume \ 2018
283 acórdão n.º 488/18 No caso dos autos, estamos perante um conflito entre direitos fundamentais, nas relações interprivadas, em termos tais que as normas de direito privado que tutelam os direitos de uma das partes importam uma ingerência na esfera protegida da outra. Em consequência, na tarefa de fiscalização da constitucionalidade, há que «(…) controlar ambas: por um lado, indagar se a intervenção nos direitos fundamentais de uma parte onera esta de forma que ofenda a “proibição do excesso”; e, por outro, averiguar se a lei fica, por exemplo, àquem daquele mínimo que a Constituição impõe para proteção da outra parte» (cfr. Claus-Wilhelm Cana- ris, Direitos fundamentais e direito privado , Almedina, Coimbra, 2003, p. 34). 13. No presente processo, tratando-se, conforme descrito, de analisar a questão da constitucionalidade da existência de um prazo de caducidade, em si mesmo e independentemente da sua concreta duração, não relevam considerações acerca da experiência de vida ou da maturidade de uma pessoa de 28 anos para tomar a decisão de intentar uma ação de investigação da paternidade, a qual, de resto, não se pode pôr em dúvida, de acordo com as etapas psicológicas e mentais de desenvolvimento da pessoa humana. Os sujeitos interessados na imprescritibilidade destas ações serão, sobretudo, as pessoas nascidas antes da reforma de 1977, época em que vigorava o princípio da proibição das ações de investigação da paternidade fora do casamento, apenas admitidas em casos excecionais, dependentes de determinados requisitos, os chamados “pressupostos de admissibilidade da ação” (artigo 1860.º do Código Civil de 1966). Os obstáculos à admissibi- lidade da investigação da paternidade impunham-se, de acordo com as conceções da época, «pela necessidade que havia em proteger a família legítima ou a dignidade e honra dos indivíduos não casados (…) e de evitar a perturbação social (o escândalo) a que tais processos se prestavam de sobremaneira» (cfr. Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, Coimbra, 1978, p. 112). Para além de obstáculos à interposição de ações, o legislador, a fim de proteger a integridade do património da família conjugal, dava melhores direitos sucessórios aos filhos “legítimos”, desfavorecendo os “ilegítimos”, a quem cabia, na sucessão de descendentes, uma quota hereditária igual a metade da atribuída aos primeiros (artigo 2139.º, n.º 2, do Código Civil de 1966). As considerações expostas justificam que a Constituição tenha consagrado um princípio de não discri- minação dos filhos nascidos fora do casamento, no artigo 36.º, n.º 4, da CRP, princípio do qual se pode deduzir um reforço da natureza fundamental e pessoalíssima do direito ao estabelecimento da paternidade, suscetível de exigir que a investigação da paternidade possa ser intentada, sem dependência de prazo. Após a Reforma de 1977, com a introdução do princípio da verdade biológica no estabelecimento da filiação e um sistema livre de investigação da paternidade, apoiado na prova direta da procriação, mais tarde facilitada por exames de ADN, serão raros os casos de pessoas maiores de idade sem paternidade estabelecida (embora, por força do pouco desenvolvimento técnico nesta matéria e do Assento n.º 4/1983, que fazia assentar a prova na exclusividade das relações sexuais entre a mãe e o pretenso pai, se verifiquem ainda, após a Reforma de 1977, casos de pessoas sem paternidade estabelecida). Contudo, a tendência predominante, mesmo nos casos em que o pretenso pai não cumpre o dever jurídico de perfilhar, é que o estabelecimento da filiação seja feito durante a menoridade dos filhos, em virtude do dever do Estado proceder à averiguação oficiosa da paternidade, nos casos em que o registo de nascimento da criança seja omisso quanto à filiação paterna (artigo 1865.º do Código Civil). Contudo, na hipótese de surgirem ações de investigação da paternidade intentadas por pessoas nascidas após a reforma de 1977, também estas devem beneficiar do mesmo regime de prazos (ou da inexistência de prazos de caducidade), por força da tutela constitucional conferida ao direito à identidade pessoal e da importância crescente do conhecimento da verdade biológica, que tem, inclusivamente, conduzido à que- bra do regime de anonimato dos dadores de gâmetas no caso da procriação heteróloga ou da inseminação de uma mulher com sémen de dador. Dá-se assim uma convergência de interesses entre os filhos nascidos fora do casamento antes da reforma de 1977 (e que constituem a esmagadora maioria dos investigantes) e aqueles casos de filhos maiores de idade, sem paternidade estabelecida, nascidos após a entrada em vigor de um regime de estabelecimento da filiação centrado no princípio da verdade biológica e na responsabilização dos pais biológicos.
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