TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 103.º volume \ 2018
287 acórdão n.º 488/18 A este propósito, afirma o Conselheiro Joaquim Sousa Ribeiro, no seu voto de vencido, que, «em face do dever de assumir a condição jurídica de pai, se existir o correspondente vínculo de sangue – o que, justa- mente, a ação permitirá certificar –, a eventual confiança do progenitor em que o seu estado pessoal já não sofrerá alterações advenientes de um ato “enterrado” num passado longínquo não merece tutela». Em relação à segurança patrimonial afirma, no mesmo sentido do Acórdão n.º 23/06, que, «De todo o modo, a tutela de um interesse de segurança na estabilidade patrimonial não pode sobrepor-se à tutela do interesse no preen- chimento completo dos dados de identificação pessoal, levando ao sacrifício total e definitivo de um bem eminentemente constitutivo da personalidade de um sujeito nascido fora do casamento». A estas considerações acresce que o princípio da segurança jurídica não aparece autonomamente enun- ciado na Constituição, sendo antes inferido do princípio do Estado de direito democrático, por referência ao Estado legislador e produtor de normas (artigo 2.º da CRP). Como se afirma no voto de vencido acima citado, a propósito do princípio da segurança jurídica (e é reiterado no texto publicado na Revista de Legislação e de Jurisprudência ( RLJ ): A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade , 2018, p. 229): «Dado este étimo fundante, a aplicação dessa ideia regulativa, algo abstracta e indeterminada, pressupõe, no plano constitucional, a possibilidade de estabelecimento de uma qualquer conexão de sentido entre exigências de segurança jurídica e os parâmetros valorativos contidos no princípio do Estado de direito democrático. E tudo aconselha a aplicação cauta dessa ideia, sobretudo quando, como no caso, ela não é invocada como princípio objectivo, mas como fundamento de tutela de uma posição subjectivada, e fora do seu habitat natural, que é o das relações patrimoniais. Até ao presente acórdão, o Tribunal Constitucional tem seguido, com rigor, esta linha orientativa. Não é por acaso que a esmagadora maioria das decisões, nesta matéria, têm a ver com questões de estabilidade ou determina- bilidade normativas. É a continuidade da ordem jurídica, ou a sua formulação em termos seguramente perceptíveis pelos destinatários, que está em causa. Ou então, como nos acórdãos referentes à garantia da hipoteca, afectada pelos regimes de privilégios creditórios ou do direito de retenção, é a teleologia funcional de um instituto jurídico – a hipoteca – que resulta obstaculizada por outras soluções normativamente estabelecidas. Em qualquer destas hipóteses, o que temos é uma situação juridicamente tutelada posta em cheque por pres- crições jurídicas, nomeadamente as introduzidas por alterações legislativas. Há afectação da segurança jurídica (justificada ou não, essa é outra questão) por parte do Estado-legislador, o Estado produtor de normas. O elo de ligação com os valores próprios do Estado de direito democrático está à vista. É de um cariz completamente diferente a situação dos autos. O que aqui se nos depara é uma situação de facto (a permanência no tempo de uma situação de facto), a que, por uma única razão de segurança jurídica, é conferida força bastante para eliminar a possibilidade de exercício de uma faculdade que se reconhece pertencer ao núcleo essencial de um direito situado no cerne da tutela constitucional da personalidade – o direito à identidade pessoal. Sendo que o acórdão assume como válida a ideia, já constante do meu projecto, de que o direito pessoal sacrificado surge reforçado pela correspondência com um interesse de ordem pública. Por mais esforço que empreguemos, não é fácil descortinar a conexão da tutela conferida a essa situação de facto com exigências do princípio do Estado de direito democrático, em que o princípio da segurança jurídica se aloja». A segurança jurídica está, assim, ligada à tutela de interesses patrimoniais, que, quando em conflito com direitos fundamentais pessoais ou de personalidade, devem ceder, por força da primazia da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos de personalidade. Os direitos familiares pessoais como o direito ao estabe- lecimento da filiação assumem não só uma natureza jusfundamental, como têm sido «despatrimonializados», no sentido em que o direito da filiação, relacionado tradicionalmente com a transmissão do património das famílias dentro do casamento e com a defesa da integridade desse património, está hoje ligado, por excelên- cia, ao estatuto pessoal e à identificação da pessoa com o seu «eu».
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