TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 103.º volume \ 2018

289 acórdão n.º 488/18 sem constrições limitativas decorrentes da vivência passada. Nesta matéria, tratando-se de bens atinentes ao núcleo da personalidade, uma atitude pretérita não deve prevalecer sobre a vontade atual, por respeito àquele direito fundamental. Nem mesmo quando há uma vinculação negocialmente assumida a uma forma de conduta que contenda agora (no momento do cumprimento) com a auto-apresentação do obrigado. É isso mesmo que justifica que a limitação voluntária dos direitos de personalidade, quando legal, seja sempre revo- gável (artigo 81.º, n.º 2, do Código Civil). Por maioria de razão, a simples inércia ou passividade, durante certo período temporal, em tomar a iniciativa de investigação de paternidade não deve ser destrutiva da legi- timidade para o fazer quando, no critério atual do próprio, tal corresponde ao seu interesse na constituição plena da sua identidade pessoal. Tanto mais que o querer exercer, apenas numa fase mais tardia da vida, um direito de investigação que anteriormente foi negligenciado não é suscetível de censura por uma valoração externa, segundo padrões de conduta normalizada, tão complexa e singularizada é a teia de determinantes da decisão e forte a carga emocional que, muitas vezes, a caracteriza. Sem esquecer, no mesmo sentido, que a afirmação desse interesse, numa fase etária mais avançada, pode ser legitimamente influenciada pela consi- deração (só então possível) do interesse de outros (e, eventualmente, por pressão destes), igualmente afetados pelo desconhecimento da ascendência do investigante (os seus descendentes, muito em particular)». 18. Os argumentos do direito à privacidade e à paz familiar O Estado de direito democrático, em prol da defesa da responsabilidade dos pais pelos filhos que fazem vir ao mundo e da igualdade entre todos os cidadãos, acabou com o privilégio concedido aos homens de não reconhecerem os filhos nascidos fora do casamento, tendo estes, após a Reforma de 1977, o dever jurídico de perfilhar, e os filhos o correspondente direito a serem perfilhados (Guilherme de Oliveira, Estabelecimento da Filiação , Coimbra, 2017, p. 107), prosseguindo o Estado com a averiguação oficiosa da paternidade na hipótese de a criança não ser perfilhada dentro de dois anos após o seu nascimento. O direito do filho a conhecer e a ver reconhecidos juridicamente aspetos tão determinantes na forma- ção da individualidade deve afastar qualquer pretensão do progenitor no sentido da não assunção do papel de pai, a qual, ainda que apresente conexão com uma eventual tutela da sua própria individualidade, não pode ser colocada no mesmo plano (cfr. Rafael Vale e Reis, O Direito ao Conhecimento das origens Genéticas, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 208). Note-se que, não existe «um direito a não ser juridicamente reco- nhecido como pai», mas apenas um interesse ligado à segurança jurídica do investigado e à proteção da paz e intimidade da sua família, os quais, quando em conflito com o direito fundamental do filho a conhecer as suas origens e a ver estabelecida a sua filiação, não têm força jusfundamental para prevalecer sobre os direitos, pessoalíssimos, do filho. Deve considerar-se, assim, à luz dos direitos fundamentais à identidade e à historicidade pessoal, que «o âmbito de proteção do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar não tutela o eventual inte- resse do progenitor, que participou num relacionamento biológico e afetivo de consequências reprodutivas, em não assumir a responsabilidade jurídica desse ato» (cfr. Rafael Vale e Reis, O Direito ao Conhecimento das Origens… ob. cit. , pp. 207-208). É que, na cultura social e jurídica atual, o Estado responsabiliza, pelo bem-estar da criança nascida, em primeiro lugar, os progenitores biológicos, e tem um interesse de ordem pública, como já foi afirmado, em que estes vínculos biológicos adquiram a devida relevância jurídica no domínio do direito da filiação e do estado da pessoa, mesmo para além da maioridade dos filhos. 19. A fixação de um prazo para interposição da ação de reconhecimento judicial da paternidade faz com que o esgotamento desse prazo seja um facto extintivo do direito de propor a ação. O prazo de caducidade restringe os direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família do investigante, bem como o direito ao livre desenvolvimento da personalidade deste. Esta restrição não constitui um meio adequado, necessário e proporcional de respeitar os direitos do investigado, violando, por isso, a proibição de interven- ção excessiva nos direitos fundamentais dos autores da ação.

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